15 de jan. de 2014

aos filhos de mãe oxum

mover-se, pelo amor ou pela dor, mover-se
mover-se com a beleza das folhas chorosas que pendem exatas sobre a região mais calma daquela queda d'água
ali, a pender nos olhos do fascínio, do delírio, desabafadas
Chorão que se alimenta dessa doce ilusão de águas calmas,
ama sua inclinação de serena deságua, agôa, no pé dos ouvidos atentos, entôa
intentos respingados, ecoam todos eles desconcertados naquela dança, suave, movida pelo amor de doer sem dor, doando cada centímetro seu ao ventre líquido de mãe oxum, linda, a cantarolar folhas e águas e ventos e choros, por todos os cantos de um amor e uma dor dilacerados, enlaçados, inundados
Amado chorão que cobre estas pradarias encharcadas, faz de suas folhas lágrima sagrada e banha, nossa humilde terra firme com doces versos de uma simples manhã de queda, d'álma.

3 de set. de 2013

A beleza das embaúbas


"Atirei mas não matei
Passarinho de Angola
Lá foi meu tiro perdido
Gavião avoou e foi embora
 
Avoou, avoou
Avoou deixa voar
No galho da embaúba
Gavião Totoriá
 
Se eu soubesse que tu vinhas
Como de certo vieste
Mandava varrer caminho
Com galinho de acipreste
Se eu soubesse que tu vinhas
Eu tinha me preparado
Com a minha casa varrida
E o meu cabelo penteado
 
Avoou, avoou
Avoou deixa voar
No galho da embaúba
Gavião Totoriá"
 
Uma letra de cacuriá invadiu o peito numa tarde de dança e ensinamentos
Letra não dançada, sussurrada em meus lábios e olhares isolados
Gavião e passarinho, hora um hora outro, trazendo encantos e levando graças, deixando sementes amendoadas e semeando cabochás alaranjadas no meu pôr do sol
Avoando enluarados, bonitos, mesmo na minha lua nova
Deixa voar, que o vôo é infinito e único e real, como as águas de um lago ou de uma cachoeira,
o instante de encanto espalhado pelos bancos de uma praça,
ou o som chiado de uma vitrola perdida na terra do nunca
 

 

19 de ago. de 2013

Existir, sem destino


A manhã desabrochou desajustada. Já não havia escuro e tampouco sol. O tempo era mais uma denominação sem importância.  A correria derretia-se perante a ânsia interna sobre o novo, o realizar, o desvirtuar. A seriema doou seu canto pra manhã que não trouxe o sol, apenas a luminosidade. Completaram-se. A construção ao lado também emprestou sinfonia pra manhã de solitudes. Ambientes inundados, imergidos, dentro e fora de mim. Há uma complacência muda no olhar do meu cachorro, sobre o que faço no jardim, sobre o que faço nas flores regadas dentro e fora do meu ser. Somos um, seres e flores e eu, afagando uns aos outros na tentativa de reavivar o belo do dia, da ausência de sol e da noite anterior, enluarada e fria. A respiração acalma, disse a professora em aula, disse Buda e digo eu, todos os minutos com os quais travo batalhas ilusórias, indispensáveis, infames e banais. A vida é mais. São as cores da grama e do ar, são as vozes da construção e da minha quietude. Nesse dia regado a pensamentos e sentimentos, como todos e tudo, são instantes que importam e me importam, e é neles que deposito a potência criadora que invade o real. Palavras são poder, ações são intimações para o real. Real é tudo o que invento, dia que reinvento e suspiro, respiro, comunho com os marimbondos no pé de café forte que me acelerou outrora. Prazeres e deveres, sentidos e sentires, amargo de beleza não refinada que contribui para o acelerar do corpo que depois precisa respirar pra relaxar. Paradoxos. Excesso e falta, tempo espaço, coisas e coisas e coisas, pessoas que faltam e se excedem, sucedem. Tudo vai. Tudo parte. Tudo é parte. As coisas e pessoas e sentires e devires. Deleuze e Manoel de Barros, Borges e Sachs, o que fiz e o que não fiz. O como é que permanece. O Tejo de Pessoa e sua beleza única, a mesma do quintal de Barros e do meu, e dessas palavras que aqui despejo, num pensamento frequente e errante de que não terei tempo de despejar todas as que quero, mas numa tranquilidade de saber que as que até agora transpirei, o fiz com zelo, apreço e intensidade. Assim como o canto da Siriema e dos pássaros tantos nesse goiabeira, os quais não sei o nome. Não importa. Eles não se ocupam da taxonomia ou de sua Sistemática. Tampouco eu. Não me preocupo em não conseguir, posto que tantos nãos ainda virão. Me ocupo, isso sim, com o sorriso terno e envelhecido que me chama pro café quentinho. Me ocupo na complacência do olhar imaturo e sincero do meu cão, a me pedir passeio e a refletir o meu próprio desejo, que também quer passear e trocar e viver, nessa manhã nem tão clara de domingo, em que me pergunto o que estou a  fazer descrevendo e analisando palavras e ideologias, quando existem sorrisos que um dia não verei e complacências sinceras me esperando pra comungar a existência.

6 de ago. de 2013

A moça que nasceu com corpo de mar

Nasceu junto com a invenção do mundo, da barriga de uma concha torta, de uma valva só. Quando da sua gestação, o mundo que ainda não existia botava pressão, lá de dentro da concha, pra nascer a moça e, junto dela, o raiar do dia. O mundo sabia que pra ele existir, antes tinha que ter moça que pensasse nele e criasse dele um sentido mais concreto. E a moça que já se sabia, embora de existência não entendesse, tentava organizar os elementos daquele todo inquieto, pra botar pra fora qualquer signo tolo que ainda não havia, de alguma coisa que ela, embora pouco compreendesse, sem querer, já queria. Assim ela falou com os grãos de areia perdidos aqui e ali na solidão da sua concreta incerteza; falou com o verde das folhas que não tinha, com o preto do céu que estava na dúvida se nascia; fez pesquisa com o vento que sobrava meio a toa pela concha na sua imensa vagareza, perguntou pra ele se queria soprar um mundo que existia; e até sugeriu ao tronco que segurava a lua com destreza se ele não queria combinar sua cor ao verde, pra ajudar a ventar o sentido pra fora da barriga da concha que crescia, e de tanta organização repentina, até enjoo sentia. A menina queria nascer o dia, sentir o cheiro salgado que ela mesma tinha inventado, testar o som meio derretido de um nascimento ainda não existido. Continuou sua busca por unir os elementos, todos perdidos na concha, cada um com seus lamentos. Encontrou as andorinhas inventadas pelo mundo, de novo em pressão por fazer verão fora da barriga da concha, em crescente expansão. Ouviu delas um miúdo canto, de passarinho esquecido de um não mundo em pranto. Resolveu então agilizar o processo: pôr fogo de uma vez no nascimento de um talvez. Mas faltavam ainda alguns encontros, reunir alguns poucos contos pra contar pro mundo depois de nascido um pouco de sua história inventada em excesso, naquela pressão de uma crescente expansão, de uma realidade deveras organizada dentro da barrigada de uma concha deveras abandonada, de uma única valva e um longo processo de construir seu existir a partir de uma moça com tão inexistente porvir, que de valvas pouco entendia mas de solidão até que conjecturava, até pra escrever uma história de um mundo tão grande, e que de tão grande de muitas valvas necessitava. Faltava entretanto um último elemento, pra criar um existir de um mundo em concretude. E a essa altura a barriga da concha já tão grande ficava, e de realidade entorpecida a concha já tanto gritava, pra nascer logo esse mundo pressionado, voar aquelas andorinhas e aquele vento soprado; que embora com a água não se tivesse ainda obtido um acordo, e tampouco com a matéria estivesse a história toda conversada, resolveu a moça inventar apenas uma textura molhada, pra tratar de pôr logo em movimentos todos os existires que tiritavam em seu pensamento. Assim foi que a moça fez nascer o mundo em seu conceito, de um jeito apressado e meio sem jeito; e por ter se esquecido de pensar em si mesma nesse processo complicado de existir os outros elementos; por ter se esquecido de comunhar água e matéria pra se fazerem juntas um existir com mais contento; acabou a moça nascendo sem corpo delimitado, e na inconcretude dessas tantas existências existidas meio as pressas, a moça acabou por fazer-se assim mesmo, com corpo esparramado: um sem fim de água de mar salgado.

5 de ago. de 2013

Diz

Corpo, morada do aconchego.
Saudade, morada da distância.
Quietude.
Cômodos outros, tantos.
Estranhos casos, mesmos.
Estranhamentos.
Sem palavras, textos, nexos...
Só distância.

27 de set. de 2011

Vacaranha

Há uma raiz de árvore recém-derrubada num sítio que fica no caminho pra cidade.
E onde eu vejo desmatamento, meu pai vê poesia.
Ele pediu ao dono do sítio se podia levar a raiz pra casa, pra fazer uma escultura.
Uma vaca com cara de aranha, ele disse.
Enquanto eu tentava encontrar qualquer sentido naquela junção, meu pai contou a história.
"Há muitos milhões de anos, no tempo dos dinossauros (q nunca ninguém viu), existiu também a vacaranha.
E já que o que prova que de fato os dinossauros existiram são os fósseis, então está aqui a prova: um fóssil- raiz, com tamanho de vaca e cara de aranha.
Vacaranha."

Meu pai, desde sempre, é dado à arte.
Conta-se que ele tocava violão na Sé, quando veio embora da roça de café. 
Ele me diz que hoje não gosta, mas é só eu pegar a viola e ele dedilha coisas que em dois anos de aula eu não aprendi.
Certa vez ele vez um boneco de ferro, e colocou na frente da loja que nos sustenta.
O boneco era de tamanho real, tinha uma cabeça de pedra, na qual ele pintou um sorriso, e uma das mãos apontava pro céu.
Roubaram as mãos e a cabeça.
Mas eu tirei uma foto, que ninguém rouba e não desbota. Eu me lembro.

Meu pai, além de tudo, é piadista.
Hoje, durante a propaganda de um carro, ele disse: "bonito esse novo carro da Honda".
Eu corrigi: "pai, não é da Honda. é da Hyundai".
E o meu sorriso foi ainda maior do que o do boneco com cabeça de pedra quando ouvi:
"Ha tá, é que o símbolo é parecido...é Hondai, então".
E pra essa história, nem precisou de fóssil...

Hilst

"Aquele fino traço da colina
Quero trancar na cancela
Da alma. Alimento e medida
Para as muitas vidas do depois.

Curva de um devaneio inatingido
Um todo estendido adolescente
Aquele fino traço da colina
Há de viver na paisagem da mente

Como a distância habita em certos pássaros
Como o poeta habita nas ardências."

*****

"Carrega-me contigo, pássaro-poesia
Quando cruzares o amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido essa viagem
Que faço a sós comigo.Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de ilusão.
Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro-poesia
E a paisagem limite: o fosso, o extremo
A convulsão do homem.

Carrega-me contigo.
No amanhã."

****

"Costuro o infinito sobre o peito.
E no entanto sou água fugidia e amarga.
E sou crível e antiga como tudo aquilo que vês:
Pedras, frontões no todo inamovível.
Terrena, me advinho montanha algumas vezes.
Recente, inumana, inexprimível.
Costuro o infinito sobre o peito
Como aqueles que amam."

23 de set. de 2011

"As coisas desejam ser olhadas de azul"

A manhã desabrochou em gotas de pássaros desajustados
Na madrugada haviam diferentes cantos para diferentes horas
Urutaus e melodias não classificadas, uma e depois outra, compondo o caminhar dos ponteiros noturnos
A siriema contemplou a deixa da primeira luz, e os sabiá laranjeira deu o toque de acolher do novo dia
Nada foi razoável

22 de set. de 2011

Gotas de azul

"É como se o céu de repente ficasse mais azul", disse a senhora de sorriso gentil.
Não é que eu desacreditei, mas achei simplesmente que o céu não precisava de mais azul, nesse lindo primeiro de primavera.
Ela não entendeu. Me disse que o azul seria diferente.
Pode ser.

Dois meses de espera pelas 20 gotas que prometem colorir o céu.
20 dias de prazo pra uma única cor, e a senhora de sorriso singelo nem imagina que eu consegiria me embebedar de azul em apenas um olhar.
Eu não desacreditei da senhora...mas por ter nascido assim, meio lilás, ainda acredito mais na despoesia que me diz que "pra encontrar o azul, eu devo usar pássaros".
Não se tratava de pintar o céu, em gotas tarjadas de preto.
Em todo caso, nessa duplicidade de meses, gotas e dias, eu vejo cisnes. E vai ver que terei neles a cumplicidade que as gotas me ajudarão a compor, enquanto empresto pro céu o único azul que eu conheço. A mesma cor, de um único olhar.

Toque

Toca, minha música roubada, apropriada, sentida
Toco, meu eterno esconderijo, quente, aberto, envolto, batido
Toca, sua doce melodia, grave, suave, baixinha
Toco, sua face enrijecida, séria, doce, macia
Toca, minha alma alagada, escancarada, exagerada, apaixonada
Toco, minhas mãos pecaminosas, imprudentes, desajeitadas, incoerentes
Toca, minha pele imaculada, intocada, envergonhada
Toco, minha boca complacente, conivente, eloqüente
Toca, sua decência estampada, invejada, odiada
Toco, minha sede arrependida, machucada, constrangida
Toca, seu sentir internalizado, guardado, findado
Toco, meu sentir emudecido, casto, proibido, urgente, requerido
Toca, minhas mãos insinuadas, tenras, trêmulas
Toco, teu olhar penetrável, forte, calejado, recatado
Toca, minha angústia amargurada, cultivada, silenciada
Toco, sua leveza estampada, sofrida, invejada
Toca, meu olhar incandescente, mareado, ressacado, inconseqüente
Toco, sua boca de canto, de encanto, de versos, de nós
Toca, minha nuca desnuda, desmedida, desconcertada, redimida
Toco, a rudeza da sua pele e poucas palavras
Toca, minha boca seca, perdida, vencida, pedida
Toco, seu gosto comedido, confuso, bom, invadido
Toca, minha pureza violada, impensada, indesejada, guardada
Toco, sua nobreza violada, irrompida, temida, sentida
Toca, minha lágrima suada, sentida, cansada
Toco, seu desejo afastado, querido, pensado, pedido
Toca...me

Mel

Qual será a cor do espaço entre o silêncio e o próximo dizer?
Qual será o jeito do olhar que nesse espaço fotografa e sente-se desnudo, fotografado?
Quais serão os caminhos percorridos nos instantes relutados, desviados?
Qual será o gosto dessas marcas, desses arredios olhos açucarados?
Qual será a mágica a permear o fino traço que separa as linhas dessa história?
Qual será o jeito do não saber, ou não querer portar-se?
Quais serão os tempos do querer-se ir e do intensamente precisar ficar?
Qual será a cor do seu e do meu olhar?

20 de set. de 2011

Transcendência

Há um cheiro de chuva no desanuviar abafado dessa manhã.
Há uma quietude singela.
Há uma cumplicidade muda nesse nosso caminhar.

19 de set. de 2011

As uvas e o vento

"Tu perguntas o que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados. Respondo que o oceano sabe. E por quem a medusa espera em sua veste transparente?Está esperando pelo tempo, como tu. Quem as algas apertam em teus braços? - perguntas - mais firme que uma hora e um mar certos? Eu sei. Perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando como o unicórnio do mar, arpado, morre.Perguntas sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras primaveras dos mares do sul. Quero te contar que o oceano sabe isto: que a vida, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas cor de sangue tornou a pedra lisa encheu a água-viva de luz, desfez o seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornicópia feita de infinita madrepérola. Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de dedos habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho como tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe dentro do vento"

Metade

"Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio. Que a morte de tudo em que acredito não me tape os ouvidos e a boca. Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio. Que a música que ouço ao longe seja linda ainda que tristeza. Que o homem que eu amo seja pra sempre amado, mesmo que distante. Porque metade de mim é partida, mas a outra metade é saudade.Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor, apenas respeitadas, como a única coisa que resta a uma mulher inundada de sentimentos. Porque metade de mim é o que ouço, mas a outra metade é o que calo. Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço. Que essa tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada. Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesma se torne ao menos suportável. Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso que eu me lembro ter dado na infância. Por que metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei. Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito. E que o teu silêncio me fale cada vez mais. Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba. E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer. Porque metade de mim é platéia, e a outra metade é canção. E que a minha loucura seja perdoada. Porque metade de mim é amor, e a outra metade também"

E eu não dou a mínima se dirão que é clichê...

10 de set. de 2011

Esperas e paixões

Havia um senhor sentado no banco de espera do veterinário. Havia um senhor sentado, há espera da sua solidão.
Havia uma moça sentada no banco de espera do veterinário. Havia uma moça sentada, acariciando a espera de sua solidão.
A espera do senhor tinha pêlos pretos. A solidão da moça, também.
A solidão do senhor era de médio porte. A espera da moça, era imensa.

O senhor passou pela moça, e na sala de espera lotada de solidões, a ela se refereiu num sorriso.
A moça passou seus olhos pelo senhor, e na solidão da sala lotada de esperas, reconheceu o sorriso do senhor.
Se conheciam.

Poderia esse conhecer ser apenas uma afinidade de esperas, ou de solidões. Mas não.
Conheciam-se de uma conversa em outrora.
O senhor não se esqueceu. E a moça jamais poderia deixar de lembrar.
Revisitou a moça aquela outra solidão. Uma de rua, de imenso porte, doente, atada por uma corda na beira da avenida, a esperar na calçada pelo seu senhor.
A moça parara o carro para averiguar, e então vislumbrou a espera daquele mesmo senhor.
"Teve cinomose, está com sequelas nervosas, fica assim, balançando a cabeça sem parar. Não consegue nem tomar água sozinho, mas sarou, está engordando e tomou banho hoje. Está aqui para tomar sol. Peguei da rua. Venha ver, tenho mais alguns aqui na minha casa. Todos de rua."
Foi assim que a moça conhecera o senhor.

Não havia pressa na sala de espera. Nem das carícias da moça, nem da quietude do senhor.
Não mais se entreolharam. Deleitavam-se de sua espera, tanto ele, quanto ela. Ambos a olhar fixamente pontos indefiníveis. Talvez as varizes sobressaltadas nas pernas do senhor, sua camisa branca amarelada, seus óculos embaçados, seu carro de para-choques batido. Talvez o jeans largado da moça, seus chinelos avermelhados, suas mãos a apertar-se uma a outra, seus lábios cerrados. Jamais se poderá supor.
A espera da moça entrou na sala do veterinário. E ao dela sair, não mais encontrou o senhor. Haviam outras moças, outros senhores, outras esperas. A mesma solidão.

A moça e o senhor estavam sozinhos. Mas não estavam sós.
Ela nunca esqueceria daquele senhor. E ele, não aparenta esquecer daquela moça. Numa tarde de outrora e nessa manhã de sábado, ambos se doaram e se roubaram a paixão da escolha.

7 de set. de 2011

Caso de Amor

"Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito de eu ir andando sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinho sobre seu corpo. De minha parte eu achei ela bem acabadinha.Sobre suas pedras agora raramente um cavalo passeia. E quando vem um, ela o segura com carinho. Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas e de bichos. Emas passavam sempre por ela esvoaçantes. Bando de caititus a atravessavam para ver o rio do outro lado. Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela como se deve comportar na solidão. Eu falo: deixe, deixe meu amor, tudo vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos vai desaparecendo no fim de uma estrada… Deixe, deixe, meu amor"


                                                                                                                                 (Manoel de Barros)

6 de set. de 2011

O resto é resto...(amém)

"Não importa se só tocam o primeiro acorde da canção, a gente escreve o resto em linhas tortas, nas portas da percepção (...) Em livros de histórias seremos a memória dos dias que virão, se é que eles virão. Não importa se só tocam o primeiro acorde da canção, a gente escreve o resto e o resto é resto, é falsificação (...) Livres da estória, a nossa trajetória não precisa explicação e não tem explicação. Somos um exército, o exército de um homem só, no difícil exercício de viver em paz. Somos um exército, o exército de um homem só e todos sabem que tanto faz, ser culpado ou ser capaz. "

                                                                                        (O exército de um homem só /Humberto Gessinger e Augusto Licks)

A moça que trabalha na casa da minha irmã vai embora. Ela começou a trabalhar há uns 3 meses, mora com minha irmã e tem uma folga por semana, não paga nada pela moradia e recebe um salário. Mas não tem horário fixo, trabalha quando ou enquanto há serviço. Minha irmã tem quatro filhos: o marido, um menino de cinco e dois, gêmeos, de um ano. Um dos gêmeos não está mais entre nós, então, na prática, são três filhos para cuidar. O menino menor tem uma babá, mas ela tem horário fixo, o que significa que, fora desse horário, minha irmã e a moça se revezam no cuidar das crianças. A moça também faz a comida e cuida da casa. Ela tem a minha idade. De uns dias pra cá, a moça começou a ter crises de choro e tristeza profunda, que culminaram no seu pedido de demissão.
A moça que vai embora da casa da minha irmã é uma pessoa doce. Antes desse trabalho, já  tinha trabalhado em dois outros empregos, os quais abandonou pelo mesmo motivo. Por falar em motivos, um dos motivos que a tornou ideal para trabalhar com minha irmã é o de que ela não costuma sair, não tem muitos amigos e fica o tempo todo em casa. Assim sendo, aguentaria um trabalho que necessita de uma forte dedicação... Mas a moça não aguentou. Talvez o trabalho, talvez a distância da família. Ela está chorando, e indo embora.

Minha mãe hoje cedo me mostrou o recibo que comprovava o pagamento da funcionária aqui de casa. O recibo mostrava a quantia de R$ 680,00 e minha mãe me disse: "trabalha o mês inteiro pra ganhar isso". Então eu apenas disse que era uma vergonha. E minha mãe se enfureceu, dizendo que não era uma vergonha, que era um trabalho digno, e que esse era o piso salarial. Mas aí eu expliquei a ela o que queria dizer com a fala que a deixou enfurecida. Eu disse: "não é uma vergonha pra ela, lógico que não, pra ela é um orgulho. É uma vergonha pra nós". Aí mamãe consentiu e, balançando a cabeça, fez o pagamento da nossa funcionária.

Ontem aconteceram fatos marcantes. Falhamos, ao tentar subverter a ordem. Pilhas de emails anarquistas, inúteis. No momento da ação, falhamos, por excesso de discurso e falta de coesão.

E o que tem a ver isso tudo?

Meu cunhado disse coisas que não gostei, sobre as crises da funcionária da minha irmã. Minha mãe não gostou do que eu disse, sobre o salário da funionária aqui de casa. Eu não gostei de algumas coisas que ouvi e me peguei concordando, no almoço da subversão discursiva. A funcionária da minha irmã  "surtou"  tanto quanto surtam aqueles que acham que o emprego resume, ou pode resumir a vida. O piso salarial da funcionária da minha, e de todas as outras casas, não é uma moratória. Subverter apenas no discurso, é fácil e cômodo. E ajuda a manter as coisas exatamente como são.

No fim das contas, não atentar-se ao fato de que ninguém chora compulsivamente do nada e de que é possível pagar mais, ou atribuir menos serviço, se assim julgar-se mais justo, são apenas outros exemplos da mesma situação que nos leva ao afago do ego no excesso de palavras vazias: no fim das contas, cada um cuida do seu, e Deus, que cuide do resto.

31 de ago. de 2011

Sabedoria de mãe

Ao vermos um pai e seu filho numa divertida pescaria dominical, minha mãe me perguntou: "Filha, você não gosta de pescar? Resondi de imediato que eu já havia gostado, nos meus tempos de menina quando, ao invés de dormir até tarde aos domingos, saíamos eu e meu pai portando varas de bambú, anzóis e migalhas de pão, a procurar rios ou lagos pelas estradas do interior. Mas, continei a explicação a minha mãe, "deixei de gostar quando hipotetizei, após longo questionamento, que para o peixe essa prática poderia não ser tão divertida quanto era para mim. A partir de então, procurei me divertir de maneiras nas quais tivesse a certeza de que não estaria provocando, às custas do meu divertimento, o não divertimento de outrem (vide, seres humanos e/ou outros animais)". Hoje, passados muitos anos desse questionamento estranho (ao se tratar de uma garota no auge dos seus 11, 12 anos), pensando friamente sobre essa decisão e considerando aquele efeito de distanciamento - só proporcionado pelo tempo - que desloca os acontecimentos temporalmente longínquos para um plano imaculado, doce (mesmo que amargos tenham sido) e quase ficcional, penso que essa decisão aparentemente altruísta (mas recheada daquele egoísmo auto-satisfacional que nos leva às decisões aparentemente altruístas) pode ter sido a primeira migalha do meu aparentemente eterno conflito com a maneira utilitarista com a qual lidamos com o mundo, inclusive uns com os outros; conflito este que me coloca tão aflitamente constrastada com todo o resto - inclusive comigo - que torna quase impossível meu atuar profissional e meu viver humanóide. Minha mãe, após minha longa e metódica resposta à sua pergunta, me disse que não era possível mudar o mundo, ao que eu respondi que de forma alguma eu tentava mudar o mundo, estava apenas respondendo à pergunta que ela me fizera. E então, mamãe disse: "mas você não precisava dizer tudo isso pra responder minha pergunta. Você podia simplesmente ter dito: não". Quando eu crescer, quero ser sábia igual à minha mãe.

30 de ago. de 2011

Jovem Senhora

A menina lia O Velho e o Mar pela segunda vez. Assim como aos filmes que assistia, lia todos os livros por duas vezes, para entranhar por completo seu significado; para relembrar atemporalmente às histórias e até para, sobre elas, se permitir opinar. Se bem que de uns tempos pra cá, quase não opinava. Não dizia nada além do essencial, ainda assim acreditando, como o principezinho daquele livro antigo – aquele que protegia a rosa – que mesmo o essencial era invisível aos olhos, e as vezes também escapava às palavras. Assim crendo, na sua ânsia de não deixar escape aos dizeres ou mesmo às suas entrelinhas, ela dizia pouco, e só o extremamente pessoal, quase contemplativo. Tudo que fugisse ao puro e simples achar, intransferível, ausente de qualquer ciência, era como todo o resto que fugia ao instante: efêmero, desimportante. Ela não gostava de nada durável demais, somente se fosse instantaneamente duradouro, instante após instante, nesse, no outro, e no outro, compondo seu tempo. Tudo o que dourava nos tempos verbais, mas que amarelava no atuar do verbo, não lhe interessava. Como aqueles romances de uma vida, eternos em passado, presente e futuro, mas inválidos no atuar do amar, quando conjugado no agora, no não doar amor do dia-a-dia. Tinha aprendido a duras penas a sentir assim. Tinha apreendido-se a duras penas, sentindo assim. Era a única forma, agora ela sabia, do seu sentimento.

Por sua falta de método no achar, ela, que de Ciência se fartara em anos de distração, não podia mais exercer de sua profissão científica. Mas, disposta, exercia seu achismo com graça e timidez. Era tímida, sim, mas não por falta de chama. Tinha decidido atender a seu chamado latente e a não mais se distrair. Andara, sim, distraída tempo demais, embora menina ainda fosse. Mas agora, ela chamava. Chamava à mulher e ao lobo de dentro, em brasa e carne viva, virtude e incandescência.

A menina perdia seu horizonte no olhar azul do velho mar, depois de passar pela cegueira branca do Kilimanjaro e de seus Ensaios. A menina lia, via e enviesava. Não eram apenas filmes e livros que a revisitavam. Seguia as vielas de Veneza, no quadro de Escher em que a perspectiva não se fazia necessária, por se tratar da multidimensional Itália. Ela lia. E revivia seus mares e montanhas, vielas e façanhas, lusitanas, bascas, romanas, nórdicas, tão verde-amarelas. Revivia, nem que tão profundos quanto os do Caribe jamais fossem seus mares navegados. Nem que tão imponentes quanto o Kilimanjaro jamais fossem seus Alpes desbravados. Nem que tão geniais quanto os desenhos de Maurits jamais fossem suas gôndolas e máscaras. Nem que tão esperança ou tão ouro jamais fosse, ela. Eram eles todos dela, e somente dela haveriam de ser. E justamente por assim o serem, tão particulares, eram todos os mais bonitos, e todos eles os mais abandonados, mares e montanhas e desenhos e vielas, porque nela já não pulsavam em instante. Convalesciam, ainda que belos, em memória. Jaziam seguros e revisitados, mas já pertenciam a conjugações pretéritas.

Pulsavam agora em instante as tulipas na sua janela. E de repete, a falta de aroma delas, antes tão fria quanto os campos de inverno no postal holandês comprado em verão; essa falta de aroma se transplantava agora em graça, na sutileza do leve inclinar do caule para um sol que já não reinava, mas emprestava luar. O laranja desbotado soava harmonia no claro verde de água, nas águas calmas de tantos oceanos, envoltos num só lar. E ali, na sala de estar de novelas e solidões, na cozinha escura de chá e quietude, no outono invernal do quarto e das tulipas, ali a menina reinava, protegia sua rosa e sua essência, construía sua cúpula de frases e memórias. Construía invenções. Inventava o romance esquecido de seus pais, esquecia o romance mal-criado de seus irmãos. Julgava os seus, para se isentar de si. E nem mesmo o merlim de seu mais novo refúgio escrito era grande o bastante. Isso porque de encontro aos lugares passados, pulsavam e a revisitavam, instante após instante, estares de um sentir sem tempo.

O velho contemplava o mar e foi quando à porta do barquinho dela surgiram um par de semblantes cansados, resfriados e enrudecidos, a doarem beijos de boa noite. E a menina notou que aqueles pés com grossas meias, há pouco não as comportavam, embora a estação fria fosse muito semelhante. E que a camisola de alças e as cuecas desnudas haviam sido, a contragosto, substituídas por conjuntos quentes de flanela. E ela então se lembrou os porquês. A razão de suas montanhas e mares e vielas e postais convalescerem agora num tempo verbal bastante específico. “Uma mulher precisa viajar. Tanto quanto precisa estar em casa”, lembrou-se de ter escrito num mar ou montanha quaisquer. E num instante sem chamados ou conjugação, a menina sorriu em brasa e incandescência. Estava onde deveria estar. No único lugar onde, em instante, queria estar. Seu sentir sem tempo também era só seu, e não convalescia. E a conjugações, jamais se sujeitaria. Ela então mergulhou no seu traje quente de flanela. Deitou a cabeça no seu luar doado de tulipas. E ardeu seu navegar, até adormecer.

O sonho da razão produz montros

A Virulência da Inverdade é o nome de um dos trechos da autobiografia de Mahatma Gandhi, intitulada Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade. Nele, “a grande alma” (Mahatma, em sânscrito) descreve uma sequência de acontecimentos pessoais decorrentes de uma omissão factual sua, a qual ele chama de inverdade. De fato não houve, no episódio narrado, uma mentira: houve uma omissão de verdade. A razão, assim poderíamos supor, levou Gandhi a entender a omissão como inverdade.

Parece simples vincular a verdade, ou antes, o “conceito-comum” embutido à palavra, ao também comum conceito de razão. E a ambas, verdade e razão, também parece lógico vincular noções de certo e errado, e, portanto, de ética e moral. Pois bem, toda essa linearidade incrível de pensamento estaria afora do jugo da dúvida se a pelo menos uma dessas palavras estivesse plenamente postulada sua própria definição. Porém, quando tratamos de linguagem, não existem nas palavras em si afirmações uníssonas de sentido ou significado que não sejam facilmente, culturalmente questionáveis; as obviedades ou consensos não são tão claros quanto possam parecer nem são unânimes os sentidos, o que pode pôr a prova – ou não, à espreita da crença e/ou da cultura – toda e qualquer linearidade dialética; toda e qualquer verdade, em seu senso-comum.

Conversemos, contudo, primeiramente a respeito da sabedoria. Não é comum, nas leituras sobre Gandhi ou de livros seus, deparar-se com extensas definições do substantivo ou mesmo com a preocupação em definir a verdade, ou satya, como denominada na religião hindu. A impressão, para conhecedores ínfimos de Gandhi ou hinduísmo como eu, é que mais que conceituações em demasia, importam de fato a ambos as ações decorrentes do “entranhamento” próprio (de cada um) do seu sentido da palavra. No mais basta, como na voz de Mahatma, dizer que “a moral é o fundamento das coisas; e a verdade, a substância de qualquer moral”.

Por entranhamento – e como quase tudo nesse texto essa palavra refere-se à opinião própria, estritamente autobiográfica e não-bibliográfica, podendo ambas, portanto, palavras e opiniões, ser inventadas; por entranhamento quero expressar mais que o conhecimento; além dele, a antropofagia de significado, a re-significação, o sentido que, ao adentrar no eu e posteriormente ser “externalizado”, ganha novo sentido; não necessariamente novo viés. Nesse contexto posto, a mim parece existir na filosofia de Mahatma Gandhi extrema sabedoria, até na escolha do título de sua autobiografia, no qual a frase experiências com a verdade completa esse sentido entranhado de que falo: o “experenciar”, de que falam também – e nesse caso minha fala é nada mais que uma antropofagia auto-bibliográfica – Paulo Freire, Jorge Larossa, Walter Benjamin e outros tantos pensadores defensores deste “substantivo verbalizado” como guia para a prática, pura e simples. A prática que, na filosofia gandhiana, só pode ser real se carregada, guiada de verdade.

Para Mahatma, ao que parece pelos dizeres já aqui citados “a moral é o fundamento das coisas; e a verdade, a substância de qualquer moral”, para possuí-las basta entranhar a verdade e a moral em seu significado íntimo, quase consensual. Não que esse entendimento do próprio consenso seja simples. A moral, justamente por ser pautada no senso-comum, não é alvo tão corriqueiro de questionamentos em si mesma, mas sim na sua adoção ou não, pelo indivíduo. Em contrapartida, muitas são as discussões a respeito do relativismo, e portanto não-consenso, da ética e da razão, por exemplo. E partindo desse fato, o sentido, o conceito e o consenso da verdade também podem ser questionados e relativizados, ao ponto de talvez levar à dúvida os ensinamentos do profeta da alma, qual sejam, a utilização da verdade como guia, como substância da moral. Mas na religião, por não estar esta, a priori, tomada pela razão factível, a resolução deste impasse torna-se simples se lembrarmos de um mandamento básico inerente a todas as doutrinas: o “agir” moral, guiado pela verdade, não pode esbarrar no fazer ao outro aquilo que não se faria a si. Pensando por esse lado, o problema, se houvesse, da relativização da verdade na interpretação das palavras de Mahatma Gandhi estaria resolvido. Porém, não somente a filosofia gandhiana relaciona-se com esses substantivos já exaustivamente mencionados (verdade, moral, razão e ética). Existe outra, digamos, filosofia, que também se intitula regida, e muito, por eles.

Conversemos agora sobre ela. A verdade exerceu poder real absoluto sobre a ciência durante todo o desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade. Na atualidade, porém, a verdade é em muito questionada, e alguns até diriam relativizada. Para Michel Foucault, por exemplo, a verdade não é absoluta, dependendo dos procedimentos – dos discursos – que escolhemos para elegê-la. Na ciência moderna, de encontro ao pragmatismo científico dominante durante os séculos XVI, XVII, XVIII e meados do XIX, esses discursos de verdade não mais se apresentam como “dogmas falseáveis, entretanto intocáveis”. Mais intensivamente a partir da Revolução Científica do século XVII, porém, a verdade científica foi postulada e idealizada; até imaculada pela própria conceituação da ciência. A crença nesta última como a verdade salvadora e inovadora produziu um discurso científico vinculado à razão e ao método, um “regime de verdade”, segundo o pensamento de Foucault. Para Boaventura Santos, “a ciência, para se constituir, precisou romper com os códigos de leitura do real existentes até então e inventar um novo código, um novo universo conceitual”, uma linguagem diferenciada fundamental para a identificação do saber científico e que, por ser restrita e específica, segundo Valéria Trigueiro Santos Adinolfi, mestre em educação pela Unicamp, “permitiu o controle e estabelecimento de um conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder. Criam-se, assim, mecanismos de controle do permitido e não permitido, da verdade e não verdade”; mecanismos de exercício do poder através do discurso científico, que por elevar a ciência ao plano do incompreensível, descola a mesma da percepção, da experiência e do entranhamento aqui já discutidos: paradoxalmente, por assim dizer, descola-a da própria verdade com a qual se mune. É justamente esse lugar poderoso e intocado no qual a Ciência historicamente pôs-se e foi posta que muitos pensadores da atualidade tentam desestruturar.

Essa tentativa de deslocamento da Ciência de sua zona de conforto e poder não é feita somente através de uma tentativa de “cheque-mate” na verdade. A razão, que já reinou soberana na ciência e nos discursos literários, artísticos e até religiosos (nesse caso, uma razão dogmática não falseável) de outrora, também vem sendo posta à prova, principalmente no “fazer ciência” pós século XVIII. A visão racionalista do século XVII, uma razão matematicamente reducionista que mecanizava a realidade e todos os seus fenômenos, foi ao poucos sendo “suavizada” por uma tentativa de compreensão mais sistêmica do universo e por uma tentativa de “humanização” da ciência. Entretanto, essa mudança traduziu-se em nada mais que uma espécie de “redução às avessas”. O reducionismo científico do século XVII parece ter dado lugar a uma espécie de reducionismo biológico na ciência moderna, e ainda, a um reducionismo tecnológico na atualidade. Pelo menos é o que defende Vandana Shiva, cientista e ecofeminista indiana.

E por falar em Índia, este discurso todo começou com Gandhi porque Vandana Shiva, ganhadora do Right Livelihood Award (também conhecido como o Prêmio Nobel alternativo) defende o outro princípio-base (a despeito da verdade) da filosofia gandhiana – a desobediência civil – como forma de resistência às deturpações da verdade; de resistência ao culto, ainda seiscentista, da razão cartesiana e mecanicista e ao reducionismo generalizado nas relações humanas, seja com seus semelhantes – diga-se, outros seres humanos – seja com a natureza: em suma, defende a desobediência civil como forma de resistir à falta de ética e moral disfarçadas no poder e efeito de verdade do discurso científico, que segundo Vandana, ainda estão muito presentes na atualidade. Ecologista engajada, Vandana afirma que “a tecnologia tem sido alçada de sua condição de meio para preencher necessidades humanas à de finalidade e objetivo da aspiração humana. A transformação tecnológica deixou de ser considerada e avaliada com base em valores humanos; ao contrario, a existência humana é que passou a ser considerada segundo o padrão da rápida mudança tecnológica. A tecnologia não precisa mais se adaptar à sociedade e à natureza; passou-se a esperar que elas é que se adaptem à tecnologia”.

A tecnologia, no sentido crítico proposto pela ecologista, constitui-se em mais uma ferramenta de poder ao discurso científico, que agora é capaz de “manipular a inteligência artificial e também a vida artificial, através da biotecnologia e engenharia genética”. Esta, por sua vez, traduz-se num reducionismo da própria vida, um mecanicismo cartesiano que quebra as barreiras estabelecidas pela evolução e brinca de “copie, corte e cole” com os organismos vivos. Além disso, as novas tecnologias desconsideram limites ao praticarem da “predação da biodiversidade e da sóciodiversidade, destruindo o valor gerado a partir de modos descentralizados e culturalmente plurais de existir”. Nesse ritmo tecnológico exacerbado, nós, criadores, é que parecemos ficar obsoletos e desnecessários em relação à nossas próprias criações: o homem parece ceder seu lugar, sua medida de todas as coisas, como afirmavam os sofistas, para a informação; e a ciência, através de seu discurso, atribui-se um valor em si mesma que a coloca acima do bem e do mal e a isenta de qualquer responsabilidade sobre sua própria produção.

Não é difícil compreender as críticas e preocupações de Shiva. Num mundo paradoxal em que inovação tecnológica e miséria crescem quase logaritmicamente; em que consumo e sustentabilidade travam diálogos incompatíveis; em que razão, ética, moral e verdade parecem pertencer a dialetos arbitrários e “inentendíveis” entre si e para todos; e em que meio ambiente e até sentimentos adquirem valor de mercado; loucura parece ser o único substantivo reconhecido como senso-comum, bem como a única ilusão de bom senso restante capaz de nos fazer deixar seguir – em estado quase que letárgico – nossa própria existência. É talvez sobre essa letargia generalizada que nos habita e se reflete em “não-ações” de mudança contra o que não nos agrada que pensadores e ativistas como Gandhi, Shiva, Foucault, Paulo Freire, se debruçaram a pensar e se “auto-conflituar”, para gerar um conhecimento que se estabeleça não apenas como saber, mas também como agir a partir do que se sabe, ou do que não mais se sabe. Quebrar as certezas postas parece ser a única forma de transcender os paradigmas de uma ciência por assim dizer sofista, aquela que ainda resguarda-se muito de críticas e questionamentos através da adoção de proposições consideradas óbvias e consensuais (os postulados ou axiomas) a partir dos quais se constitui toda uma linha de raciocínio, mas os quais, na prática, sustentam-se por sua não-inteligibilidade e em verdade podem ser meros sofismas, relativos, e até ferramentas oratórias de poder e política.

Como os artistas ingleses que propuseram uma livre-adaptação na obra do pintor espanhol Goya – alteraram gravuras originais consideradas patrimônio cultural da humanidade de acordo com o que acreditam que a ciência moderna faz, alterando o patrimônio humano da humanidade; ou como o próprio Goya, que se propôs a repensar sua crença na razão iluminista após experenciar os horrores da liberdade, igualdade e fraternidade traduzidas na matança de seu povo espanhol quando da invasão napoleônica de Três de Maio (nome, inclusive, de sua mais importante obra, justamente aquela “readaptada” pelos artistas ingleses); como todos eles fizeram, é preciso que a ciência também se proponha a repensar seu discurso totalitário e imaculado e que a própria sociedade proponha-se a repensar, e até relativizar, sua visão de mundo e de conceitos postos como fé, verdade, moral, ética, razão, ciência, experiência, autoria. Só assim é possível que não aceitemos de pleno grado um discurso que não nos é democrático ou sequer entendível justamente pelo fato de não sê-lo e de, portanto, não termos arcabouços teóricos para questioná-lo ou negá-lo; só assim é possível que não acreditemos piamente nesse discurso apenas por ter uma crença posta em sua procedência, sua autoria, e não pelo que ele de fato diz, ou “diz que diz”: o entranhamento e a experiência talvez se apresentem como arcabouços práticos tão válidos quanto os teóricos para que exercitemos nossa potência intelectual crítica e até criativa.

Essa “criticidade” tão necessária talvez caminhe lado a lado com a criatividade e com a autonomia do sujeito, e de forma alguma deve ser entendida como uma resistência ao novo. Pelo contrário, sujeitos autônomos – novamente “digerindo” Paulo Freire – teriam justamente essa capacidade de “digestão” do conhecimento posto, experenciando-o para poder julgá-lo, e a partir daí aceitá-lo ou não. É claro, tudo que neste texto posto nada mais é do que essa digestão que proponho e a que me proponho, justamente por isso recheada de citações e de auto-afirmações e auto-conclusões, talvez uma tentativa de exercício da potência criadora, já tão defendida por Nietsche. Um ensaio, por conseguinte, auto-bibliográfico (como já dito), sem apegos demasiados a referências e autorias, com certa “auto-permissão” à invenção, porém sem nenhuma tola pretensão de “reinvenção da roda”. Talvez uma leve sugestão, apenas, de uma autonomia um pouco menos autoral e, portanto, talvez mais livre da prepotência e arrogância do discurso, científico, artístico, religioso, filosófico – mesmo que, discurso, ainda seja. Talvez uma leve esperança influenciada pelas palavras do poeta Manoel de Barros – “repetir, repetir... até tornar diferente” – na proposição, nem que absolutamente não inédita, de reinvenções.

Como já disse Goya em outra de suas famosas obras, chamada Los Caprichos, “El sueño de la razón produce monstruos” (traduzida como o sono da razão produz monstros). Não há um consenso absoluto sobre o sentido dessa frase, mas acredita-se que Goya utilizou-a no contexto do iluminismo, da promessa de esclarecimento e iluminação de idéias que se acreditava que a razão traria a uma França recém liberta do obscurantismo da Idade Média. Entretanto, já que “el sueño” pode ser interpretado tanto como sono como quanto sonho, e já que aqui defendo a “digestão da autoria”; permito-me uma também livre-adaptação das palavras do pintor espanhol: o sonho da razão, aquele de pensá-la como a salvação da humanidade, através da ciência ou de qualquer outra produção humana, também pode produzir monstros.

A razão e a verdade, como dito no começo deste discurso, podem sim sugerir uma simples união: ao munirmo-nos da razão, produzimos e/ou perpetuamos verdades. Mas talvez a lógica, nesse caso, deva ser inversa. Se, com todas as devidas ressalvas, extrapolarmos a lógica da sabedoria de Gandhi ao dizer “a verdade é Deus; e não Deus é a verdade”; se a ela extrapolarmos logo podemos pensar, ao tratarmos de ciência, que ao munirmo-nos da verdade, aquela experenciada e guiada pelo princípio religioso mas nem por isso menos factível “não fazer ao outro aquilo que não se faria a si”; ao munirmo-nos dessa verdade, aí sim, talvez consigamos perpetuar a razão, e não mais precisemos de relativizações deveras e discursos repetitivos e demasiados, como este. Se bem que, já diria Manoel de Barros, “repetir é um dom do estilo”.

8 de jun. de 2011

Sobre o viver

Pra não me acostumar, vou lá fora, provar os frutos da macieira.
Pra não me acostumar, vou levando, soprando as velas da caravela.
Pra não me habituar, vou bem longe, contar os ventos dos mares do sul.
Pra não me habituar, vou bem perto, soltar o laço, desarrumar.

Pra não me atrapalhar, vou lutando, vou colorindo, me aventurando em meu balanço de romãs.
Pra não me atrapalhar, vou entendendo, desaprendendo, desafiando a lógica do sobre.
Vou navegando, desconstruindo,
Vou ensaiando a rima do viver.

Pra não me afogar, vou bem de leve, driblando a ira, chovendo a fuga, queimando o belo.
Pra não me afogar, vou de mansinho, capturando o sono, o sopro, o sonho.
Abstraindo, "des" iludindo, apaixonando.
Desesquecendo.

6 de jun. de 2011

Lá lá lá lá lá lá lá lá lá

Nós não queremos saber seu nome ou quanto tempo demorou pra chegar até aqui.
Queremos saber em quantas vezes, em quanto tempo você comprará seu domingo feliz.

E Escher se perguntava porque não representar as várias realidades de uma única.
E a gente se ilude com a verdade eleita, mais fácil ou difícil, dependendo da crença e da necessidade messiânica.
E vários foram os filósofos da verdade e da fé, e do amor, e da gentileza.
E vários são o devaniar de instantes, e de cousas todas.
E a gente se distrai, dispostos.
E quem sou eu pra destruir o fingidor eleito, credo, de cada um.
Nada por dizer, restando ainda o escutar, ou ler: fala...ou escreve.
É silêncio, de qualquer jeito.

18 de mai. de 2011

Egoísmo

Estou doando a minha casa
E de tudo o que existe dentro dela, não arrecadarei sequer um centavo.
Não haverá um bazar em meu benefício, porque não sou capaz de valorar nada do que não irá comigo.
Necessito sim pagar as contas, mas a moeda de troca, nesse caso, não seria inteligível às cifras.
Tudo o que ficará possui em si história demais para ser findada em números
E, ainda assim, possui apenas uma parte.
Parte não suficiente para fazer caber nas malas, quais não sejam, aquelas da memória, estas sim, sempre cabíveis.
A história inteira é que irá, e com ela, cabem apenas poucas coisas que se pode carregar nos braços.

Estou doando a minha casa, e junto dela, a placa verde que construí com o numeral: 1003.
Dois zeros que espaçam o 1 e o 3 suficientemente para não entediá-los um do outro, mas que não chegam a lhes permitir a solidão, posto que, na sua aparente nulidez, são par.
Estou doando o jardim que desconcretamos, a roseira, a babosa e o meu pé de manjericão italiano.
Dôo também a tranquilidade das manhãs de domingo, o aroma das folhas caídas do outono, o cantarolar dos pássaros no fim de tarde, o barulho das janelas da sala batendo durante a tempestade.
Estou doando o azul da minha cozinha, acompanhado do cheiro do camarão na moranga e do frescor do suco de limão.
Dôo a cafeteira italiana e o amargo do café, suavizado pela réstia do sol, na janela sem cortinas.
Estou doando o rosa do meu banheiro e o friozinho incômodo durante o banho nas noites de inverno, advindo das janelas emperradas pelo excesso de tinta barata.
Estou doando o quadro de Monet que pintei na minha janela
E também a fotografia da lua cheia aprisionada por entre os dois pinheiros europeus da casa da frente, visível da metade do meu quintal, se eu me inclinar 45 graus para a esquerda e olhar ligeiramnente para cima, por volta das 19:30 de muitas noites doces.
Dôo ainda o laranja amarelado do adormecer do sol, visível do meio da rua, bem em frente ao meu portão.

Estou doando a minha casa.
Dôo com ela todas as minhas partes, histórias inventadas, embaralhadas.
A invenção, a desordem e os detalhes de cada uma delas, esses, eu carrego no meu abraço.
Este, que é inteiro e é só meu.

9 de mai. de 2011

Signos todos

Se a gente esquece, perdôa.
Ouvi por aí...
Mas se a gente esqueceu, como sabemos, então, que perdoamos?
Eu prefiro perdoar sem esquecimento.
Acho que resignifico...
Aliviar o peso da existência humana seria a função da arte, da ciência e de todas as profissões minimamente não puramente mercantis, disse um ator.
Me perguntei então se a criança seria artista, já que ciência ou outra profissão, por pressuposto, já não exerceria.
Para ela, me parece, a existência nõ existe, assim como a arte ou a profissão.
Ela é que existe, a criança, simples assim, e assim Sendo, significa sua concretude.
A existência, a arte e o mercantilismo são conceitos...
Vai ver por isso o peso, que a nossa existência simboliza e usa de muletas para resignificar todo o resto,
Inclusive a criança.
É quando ela deixa de fazer arte.

Plural

No jornalismo não se usa adjetivos, ouvi há pouco
E eu que gosto tanto deles, me vi novamente sem pátria
Isso porque o tempo é meu principal companheiro e ele me adjetiva, na medida em que me significa e eu a ele
Mas sendo assim, penso que posso adjetivar palavras sem pátria
Sem definições fechadas ou enquadramentos, palavras, apenas
Adjetivá-las até substanciar sua existência em mim, torná-las coisa, substância, não necessariamente palpáveis nas mãos, mas antes no olhar
Então o mundo é um grande adjetivo, mesmo sendo verbo-substanciado... e cabe na palma do meu olhar
Ou isso, ou não serei jornalista...

5 de mai. de 2011

O Cavaleiro Provável

Vai cavaleiro inexistente,
Carrega no teu manto dourado a aurora do amanhã,
Cobre de palavras singelas o sereno tardio do improvável
E de doces fazeres recheia as desventuras de agora.

Inexiste, cavaleiro do infinito
E arma sua couraça azul de lata sobre as flores cultivadas tuas.
Protege, com tua armadura voraz, o jardim do instante.
Cuida da efemeridade das tuas tulipas, mas também da frágil constância daquelas violetas.

Vai cavaleiro da ilusão,
Alimenta a chama do fantástico até a última rosa esmorecer.
Sussurra o outono tardio nas cores do ontem
E recolhe com tua lança certeira as pétalas das árvores que já não verdejam mais.

Aquieta, cavaleiro desconhecido,
Acalma com teus braços impossíveis o entristecer da alvorada.
Acalanta também a ti, a teu olhar invadido do tempo e fugido do outrora.
Desnuda-se de tua concha turquesa a carregar as ostras perdidas pelo caminho.
Desposa tua máscara de metal, antes que ela a teu fazer enrijeça e des-signifique,
Antes que dela não te consiga inexistir.

17 de abr. de 2011

Anos Incríveis

What would you do if I sang out of tune,
Would you stand up and walk out on me?
Lend me your ears and I'll sing you a song
And I'll try not to sing out of key.

Oh, I get by with a little help from my friends
I get high with a little help from my friends
Gonna try with a little help from my friends

                 (A Little Help from my Friends, dos Beatles, mas mais legal com Joe Cocker)

Noite de sábado, rádios que acessam a internet, tiram fotos e ainda servem como telefone, em alto e bom tom na praçinha escura. Uma lata de had bull vazia brilhando na grama, uma lua bonita, me lembrando um filme antigo qualquer. Risos e açoitos apresentam uma roda de meninos, adolescentes, no escuro da praça. Meninos que outrora foram meus tios, meu pai e meu irmão; meninos que ainda serão meus sobrinhos, os filhos de meus amigos e quem sabe também os meus. Imagino uma roda de garotos de cinco anos, numa escola elitizada qualquer. Imagino-os numa manhã de sexta feira, com seus brinquedos da Hot Wills e roupas da Chico, chegando aos poucos nos monstros lustrados de seus pais, que os chamam carros. Chegando e se posicionando na roda, um a um, conforme suas afinidades de crianças de cinco anos. Imagino-os comentando sobre o estranho acontecimento da última noite, a visão aterrorizante de um dos garotos, um Vectra velho estacionando na porta de sua casa de bairro nobre. De dentro dele sai um velho amigo de seu pai e seu filho também de cinco anos, por conseqüência, amigo, ainda não de conveniência, do garoto. O garoto, estranhado com situação tão incomum, diz ao pai, meio de canto, sobre a inadequação do automóvel. O pai acha graça, concorda com a velhice do carro e deixa prá lá. O filhinho do dono do Vectra não estuda na mesma escola do garoto indignado, portanto, não está na roda de amigos da Discovery Kids I, II, III e mil. A roda discute, horrorizada, tamanha esquisitice. Posso ver os gestos e talvez ouvir algumas rizadas. Na manhã seguinte, o garoto diz ao pai que não quer mais que a mãe vá buscá-lo na escola com seu Peugeot sujinho e riscado. O pai não dá maior atenção ao filho, apenas diz que se ele não quer ir de Peugeot, que vá a pé. Liga o GPS do seu celular, que avisará sobre os radares, e segue para a escola burguesa do filho.

No meu romantismo quase Kantiano, essa situação não me parece o que aconteceria numa roda de garotos de cinco anos, independentemente da marca de seus brinquedos, roupas ou método de ensino. Se valores assim se constroem em rodas de garotos de cinco anos, então talvez eu entenda as rodas de homens de trinta, que falam de outro objeto de assunto, mais comum aos homens a partir da puberdade, como se falassem do objeto de assunto daqueles garotos de cinco. Eu me enojo desses homens de trinta, mas não posso me convencer da livre escolha de assunto daqueles garotos de cinco. Algo está errado. E eu não acho que seja os riscos do Peugeot, a velhice do Vectra ou tampouco a minha. Acho que entendo porque nunca gostei das rodas: por mais de uma vez, me esqueci que sexta feira era dia de exibir meus brinquedos; e até hoje, uso meu celular apenas para dizer alô.

30 de mar. de 2011

Sobre pautas e cuecas

O laudo técnico da ótica dizia: troca não realizada por constatação de uso indevido. Uso indevido, método qualitativo de análise, por muito ignorado pelas ciências ditas “duras” e até hoje visto com maus olhos por elas. Tratando-se justamente de olhos, de óculos de grau, meu olhar criativo conjecturou possíveis usos indevidos: como colar, arquinho de cabelo, lupa das crianças, sossego do cachorro, peso de papel. Não, eu não havia utilizado indevidamente meus óculos. Olhos de volta à dura realidade do papel-laudo: lentes – sem defeito; banho anti-reflexo – sem defeito; blá blá blá – sem defeito. Constatação: uso indevido. Olhos de interrogação, circulando o espaço do quarto, onde outrora os óculos habitaram por uma semana, desde a aquisição. “Uso indevido”, olhos pensantes, “festa a fantasia: não; aventuras eróticas: não; excesso de lágrimas: não; lambida do cachorro: também não; controle de televisão por engano: não”. Olhos intrigados, ainda calmos, na nota de rodapé do laudo: os óculos devem ser lavados com detergente ou sabão neutros e enxugados com guardanapo de papel ou tecido macio. Maciez: outra análise qualitativa. Olhos no banheiro, constatando: sabonete líquido neutro e toalha TECA, ultra macia (na qualificação minha e da etiqueta). Não, eu realmente não usei indevidamente os meus óculos. Olhos no laudo, levemente irritados, traduzindo o técnico: "se vira com os riscos, mané, seus cinco cheques já estão pré-datados".

E eu precisava de uma pauta.

Então conjecturei duas: a cientificidade dos métodos técnicos qualitativos nas entrelinhas dos consumidores que lavam os óculos segundo as normas técnicas; ou: a subjetividade da técnica: qualitativamente a favor de quem? É, talvez não fossem temas noticiáveis. Então me sentei na cozinha, reclamando meu infortúnio não-noticiável e recebendo conselhos de “não se revolte com coisa pouca”, enquanto me lembrava de ouvir indignações terríveis sobre as cuecas no chão do banheiro. Tive um choque de realidade às avessas. As cuecas no chão do banheiro seriam mais indignantes do que meus direitos negados de consumidor? Ou seriam elas mais apavorantes do que os cachorros sarnentos espantados aos montes, diariamente, da portaria do meu condomínio? Lentes de R$500 reais seriam menos importantes do que lentes de R$2000, numa lógica técnica-subjetiva? A construção do nosso entender da culpa, onde se constrói? Será que eu devo desculpas pela maciez não suficiente da toalha que riscou minhas lentes? Devo me retratar aos métodos qualitativos, os quais não me são claramente especificados, e devotar toda minha revolta às cuecas? Ou devo canalizar a energia da revolta na repreensão aos latidos do filhote do meu cão, para talvez construir nele o mesmo derrotismo que me faz não latir os meus direitos de cidadã; qual seja, talvez, o mesmo derrotismo que faz o meu cão não latir, hoje, quase nada. Indignações, construções sociais pré e pós-estabelecidas? Injustiças, pautáveis? Valores, noticiáveis? Creio precisar de pauta mais técnica, quem sabe sobre como lavar lentes de grau de alta qualidade com detergente neutro, secar com tecido macio, e rezar, para não ter seu desvio padrão classificado qualitativamente como uso indevido.

14 de mar. de 2011

Graça

Hoje tive alguns encontros com o passado.
Um passado tão próximo, tão vivo, e tão longínquo.
Creio que o que me levou às recordações foi um almoço solitário num restaurante lotado. Solitário, não sozinho. E por opção.
Cumprimentei a invisibilidade do moço que retirava os pratos, enquanto me dava conta da minha própria, também a ele. Achei graça.
Graça, outro encontro. Hà tempos não encontrava essa ótica.
Encontrei a falta de civilidade ao me deparar com a insignificância da faixa de pedestres desses lados tropicais. Mas me lembrei, de cara, da falta de humanidade também tão realçada onde as faixas têm seu poder.
Engraçado, foi o achar da graça.
Talvez tenha se dado por ouvir um alerta de mensagem de um celular que eu já não tenho mais, meu antigo companheiro nos mares do norte. O sms não era pra mim, desta vez. A lembrança, em contrapartida, sempre será.
Outonos de olhos e ouvidos, folhas do Porto, música doce de praça, neve de Seia, blusa de lã cheirosa, mar de África, cores de jardim. Fotografias que não se rendem ao amarelar do dia, dos meses, dos anos, se assim for preciso.
A graça pode ter ar de tristeza. E por isso mesmo, é ainda mais bela e doce. Azul, mesmo com chuva fina na janela do carro estacionado, esperando pelo doce amargo do café.

4 de mar. de 2011

Casa pré-fabricada

Abre os teus armários, eu estou a te esperar
Para ver deitar o sol sobre os teus braços, castos
Cobre a culpa vã, até amanhã eu vou ficar
E fazer do teu sorriso um abrigo

Canta que é no canto que eu vou chegar
Canta o teu encanto que é pra me encantar
Canta para mim, qualquer coisa assim sobre você
Que explique a minha paz

Mais vale o meu pranto que esse canto em solidão
Nessa espera o mundo gira em linhas tortas
Abre essa janela, a primavera quer entrar
Pra fazer da nossa voz uma só nota

Sexta feira, véspera de festa, e acordei com a melodia que chama a primavera
Primavera igual a da minha folha azul sulfite, que ainda floriu pouco, coisa da qual não me arrependo
Contei as flores e lá haviam duas
Dois dias inteiros, a versar no singular
Dois concorrentes por vaga, foi o que me disseram ontem, na entrevista
Concorrer é palavra que não me cabe, a não ser que seja para correr junto, grudado, mesmo que distante e singular pareça
Correr pra alcançar a nota mais doce, mais suave, mais terna e eterna
Dois foram os dias de flores, que floriram forçadas no meu inverno azul bebê
E eu, que sou simbólica, gosto da casa construída aos poucos, pensada, sentida, pluralizada
Deixo entrar a todos, mas sempre de dois em dois, eu e mais um
Deixo entrar pela única porta aberta, enquanto as duas abas da janela repousam encostadas
Deixo entrar, visitar, eternizar o instante, mas por hora moro só
Moro no 1, acompanhada por dois longos zeros e instantes edificados
Moram aqui ambos numerais, e na minha simbologia, eternizado está um só
Um, que chama o outro, querendo encontrar o novo, de novo
Um, que se reconstrói ainda mais puro e leve, que se representa na menina e a ela representa
Um, que representa a espera solitária, sua angústia, medo, ânsia, vontade, saudade, vigor, amor; mas que não se adia
E se apresenta, tocando de leve as 1003 primaveras que entrarão pelas duas folhas abertas, azuis, sulfites, já-nelas.

25 de fev. de 2011

Palavras, apenas

As palavras irrompem como a fome, intransigentes, urgentes
Violam a harmonia das estranhas, compõem novo caos de melodias, vozes
Não cessam enquanto não saciam, persistem, consomem as reservas, as forças,
Chegam à carne, adoecem os músculos, enrijecem, silenciam

As palavras queimam como o frio, gangrenam as vísceras, os reflexos, as lembranças
Insurgem tempestuosas, exigentes, arrogantes, incondicionais
Ameaçam soprar certezas, devaneiam, enlouquecem

As palavras impõem-se, sem educação, cuidado, zelo, respeito
Sem permissão escalam os braços, as cordas, se gritam mudas, insistentes, pertinentes
Ausentam-se presentes, fixas, olhadas, molhadas, faladas, comidas

As palavras afirmam-se, impetuosas, charmosas, formosas, insinuantes
Seqüestram o fôlego, o cheiro, o gosto, o aconchego
Seqüestram a alma, o delírio, o suor, a razão
As palavras são como a paixão

24 de fev. de 2011

Ama relo

Gira, sol.
Doze meses, doze horas no centro do mapa.
Cinco meses, cinco horas nos pólos do globo.
Gira à frente e atrás, céu.
Hora se põe no Sul, numa montanha qualquer ocular.
Hora se põe no Norte, na cordilheira oceânica, ilha da cara.
Íris.

Gira, sol.
Foge só até o inverno passar.
Cede seu posto pra aurora, a borear as luzes da noite.
Dá espaço, lugar pra constelação,
Pra estrela cair.

Gira, gira mundo, ventos, tempos, sol.
Mas volta, migra, vem com a andorinha, veranear.
E floresce,
Girassol.

Transe

Somos seres simbólicos.
Designamos símbolos para expressar sentidos e sentires.
Substantivos, verbos transitivos diretos, singulares, plurais, em todos seus tempos e espaços.
Preteridos, nós?
Pretensiosos, talvez.
Nos confundimos, as vezes.
Nas palavras, símbolos, sinais.
Confusão, substancial.
Seria estado intransitivo?
Dá não.
Decido que transgride, transmuta, direta e indiretamente.
O tempo é que ainda substancia.
E os verbos, até quando se substantivarão?
Espera.
Só o quanto pode, pra não intransigir
e entristecer.

Cartas áridas de mar

Uma flor para cada dia, uma, outra e mais uma
Margaridas coloridas, no mar azul sulfite
Se rosas fossem, dor apreenderiam
A delicadeza aprenderá nas cores
Cores de quem ama, e chora por seu ofício

16 de fev. de 2011

A Tempo(s), Modernos!?

Certa vez escrevi, nos meus tempos de colégio, que a humanidade aos poucos se tornaria escrava de sua própria Ciência e Tecnologia, as quais, como aliadas, far-lhe-iam muito mal. Já bem recentemente, numa aula ministrada para a sétima série, proferi discurso mais ameno. Disse apenas que ambas são e estão postas como ferramentas humanas, cabendo a nós, seres sapiensantes, selecionarmos delas bons ou maus frutos. Por vezes discordo de mim, por outras tantas, não poderia concordar mais. Assim como meus muitos discursivos “eus”, tanto a Ciência quanto a Tecnologia, o pensamento e, porque não o desenvolvimento, são ambíguos, por se tratarem de produções humanas, como conceito e ato. E como tal, possuem premissas, prerrogativas, conjecturas passíveis de erro, de falseabilidade, de falsidade, de contestação, de julgamento. Em contrapartida, justamente por sua característica humana, são também detentores de potencial de mudança, de afirmação, de progresso, de beleza.

A palavra desenvolvimento, por exemplo, é bela. Talvez ainda mais belo seja seu aroma frutífero, seu gosto agridoce do Pré-Sal, gosto transposto, das águas do São Francisco; gosto acelerado do PAC, esperançoso, do tratamento contra o câncer ou contra a depressão, particulado, de um acelerador suíço. Tão belo se suporia o sorriso bem remunerado do educador, o sindicalmente garantido do pesquisador, aquele dignamente qualificado do trabalhador, o tolamente humanizado, de uma perereca multicor imóvel para o flash num fragmento qualquer de Cerrado, Mata Atlântica ou Floresta Amazônica.

A Ciência supõe produção, ou a pressupõe. Produção de saberes, de técnica, de tecnologias, de partilhas. Compartilhar novidades, avanços econômicos e humanitários, melhorias básicas e altamente luxuosas, as simples e as deveras complexas. Partilhar principalmente a si mesma, como oferta e produto, ferramenta tocável, acessível e entendível a todos; como processo, formação e informação, para além de setores específicos, politizados, elitizados ou academicizados, assim como o pão, a água, a aposentadoria, o salário mínimo, a cesta básica. Comunicar, enfim, mas não só. Relatar fatos, mas também incitar indagação. Divulgar, em parceria com as mídias, conhecimento e acontecimentos, prós e contras, intervalos de confiança e desvios-padrão, criando assim condições reais de interiorização, reflexão e domínio do saber. Tudo isso também é suposto e pressuposto, do desenvolvimento de um país.

De uma Nação espera-se coerência, na consCiência que em nós reside. Nem tanto um romantizar Kantiano, nem tanto um determinismo afoito, tampouco um reducionismo (Des)cartesiano ou um mecanicismo industrial. Nem tanto Espaço, nem tanto subsolo. Não se almeja o menos, mas tampouco o tão somente. Espera-se, além do benefício, poder também beneficiar, criar, andar com as próprias pernas; progredir na economia e na filosofia, no seqüenciamento de pares de bases nitrogenadas e nas tubulações de água e esgoto, em Furnas e na merenda escolar, nos quatro “erres” e na desaceleração do consumismo, no óleo de mamona, álcool da cana e no incentivo ao transporte coletivo, na exportação e no subsídio ao pequeno produtor, nas commodities e no declínio da curva, quase reta, do superaquecimento.

Da Ciência e Tecnologia espera-se apoio. Não finalidade. Tampouco salvação. Apoio. O mesmo que se espera da senhora quilombola com seu saber tradicional sobre as plantas medicinais da Reserva em que mora, aquele que se espera do agricultor que sabe, na brisa da manhã, o período certo pra o plantio e para a colheita. O apoio para a construção do conhecimento, de um talvez “fazer científico além da Ciência”. Um fazer que transborde limites prévios, que extrapole, sem ignorar ou negar, as paredes da Universidade e dos tubos de ensaio. Um fazer de cunho também humano e social. Um fazer comum, que busque parcerias para criar e se recriar, que se comunique com o mercado, com a economia, com a sociedade, com a sociabilidade, com a própria Comunicação.

A Ciência, como saber, não tem finalidade. Tem sim seu papel, como a arte, a religião, a política. Pensá-la como fim (como finalidade) pode trazer os perigos de um utilitarismo maquiavélico. Pensá-la como neutra pode enviesar seu foco. Pensá-la como puro prazer, pode transformá-la num instrumento de afago ao ego. Pensemo-na, então, como causa-consequência de um processo de desenvolvimento, mais que de um país, de uma sociedade, e por que não dizer, humanidade. Pensemos a ela como uma ambigüidade, de neutralidade confiável, contentável, contestável, falseável. Uma ambigüidade de belezas e tristezas, afirmações e negações, potenciais para o sim, para o não, e por mais paradoxal que possa parecer, para o talvez, esta dúvida que a permeia, a falseia, dá-lhe esperança e não a deixa cair na armadilha da dicotomia, do maniqueísmo. Pensemo-na como ferramenta, como responsabilidade, como crítica, como também passível de autocrítica. Pensemos nela, ainda, como potencial, de mudança e de manutenção, de comunicação e de informação, de crítica e de construção, de conscientização, produção e reflexão. Produção de tecnologias, de idéias, de formações. Reflexão de ideais. Para que seus produtos não sejam simplesmente aceitos como senso comum ou verdades intransponíveis e incondicionais; para que não sirvam apenas para reificar conceitos prévios ou novos pré-conceitos; e para que ambas, Ciência e Tecnologia, não caminhem para ser o cavalo de Tróia da modernidade, como outrora eu pensei e escrevi nos meus tempos de colégio, mas para que também não sejam ou se revistam da neutralidade casta posta no meu discurso, durante a aula ministrada para a sétima série.

Som ar água.
Não está tudo junto, nem separado.

13 de fev. de 2011

Alivia

Ali via varanda, com frente Parati.
Pele branca, vultosa maestria, repousa no cais.
Velonge vejo, carvalho sem dono, vinho romã.
Rumo a bombordo, no vento, à proa,
Ali vinha tecido, traçado, novê-lo.
Revés popa, suco coco, bolo-mar aqui, ali, acolá.
Maracás, entre nós, ali via marejo, anseio, velejar.

Baile de Máscaras

Um samba de Noel e um chopp vestido de branco
Um traje de gala e uma câmera aprisionando instantes de efemeridade
Uma reforma nos móveis, nos cômodos, na casa, na razão, na vaidade
Um expresso duplo com espuma de leite
Uma verdade

Inundação

Chove na torneira e no filtro da cozinha
Chove no chuveiro e no sabonete líquido do banheiro
Chove nas paredes e no travesseiro do quarto
Chove na espera da sala
Chove no vazio do quintal
Chove na rudeza da pétala do jardim
Chove em mim
Muito

11 de fev. de 2011

Ter sonho de outros, de alguns muitos tantos que se ama, gosta ou conheçe
Ter sonhos reais, simples ou até comuns, sonhos, apenas sonhos
De vida, empregos, prosperidades, vontades, pessoas, famílias
Filhos, maridos, esposas, casais de amigos, casais, casas, casulos, carnes

A crença no instante é como nó de vestido largo, que se aperta até o estralar da costura, para não cair.
Aperta como casca de uva na boca, doce pra não crer azeda.
Aperta como mãos que se beijam, olhos que não se calam.
Como corda de peão de criança, justinha pra fazer rodar
E roda, roda quanto mais madeira é, dura, seca, de metal na ponta.
Roda mais no alfalto liso que na calçada de pedra rústica
E na mão do menino roda leve, suave, embora de metal de ponta ainda seja.
Metal amalgamado, de liga, que parece duro, mas quando quente, já foi líquido.
Líquido que derramou em mim e solidificou, como rocha, que não quer quebrar, não quer sair, mas não que ficar.
Rocha que nem com água "sede", tanto bate, mas não fura, não molda, não muda.
Peso que em mim afunda, bate forte, em dupla, uma mais forte, outra mais muda.
Bate em noite e em dia, bate até me cansar doer e me desanimar, por não parar de bater.
Bate de ensurdecer, de transbordar, metal quente que ainda está, que é, que não findará de ser.
Se sonho de outros também fosse, gostaria eu de parar de bater.

9 de fev. de 2011

A fundo

Ela levantou-se no mais tardar de sua hora inventada e pôs-se a pensar como se sonhasse.
Não saciou sua fome de prazer, deixou a cafeína posta à mesa e o cigarro deitado no canto dos olhos.
Fumou as rosas do jardim e bateu a porta da frente tão forte que estremeceu seu corpo vil.
Tirou a camisola suada de sentir e correu pelo asfalto escaldante de uma noite inteira.
Correu, reluzente em cada centímetro seu, suas pernas e busto desnudos, dançando suaves no bailar dos seus olhos de gato, sorrateiros, mareados, ressacados.
Suas mãos sedentas e cansadas de noite estendidas ao céu, como que procurando a redenção inatingível da pureza maltratada, submissa, arrependida, desejada.
Assim ela partiu, com sua pele sonhada de nanquim e madrepérola, seus olhos fixos no sem fim do asfalto, cabelos longos confundindo a silhueta e a boca, seca, úmida de palavras e fios e nós.
Correu como se fugisse, partiu como se ficasse, queimou como se chovesse.
Derreteu-se debaixo de uma árvore, as costas repousadas no tronco áspero, as pernas encolhidas sobre o peito, um braço repousado nos joelhos, o outro levantado à sua frente, doce frente.
Escorreu-se seu sussurrar de baixo tom, temperando a relva do fim de tarde.
Amou como pôde.
Reinventou sua hora marcada e deitou-se,
Como se vivesse.

7 de fev. de 2011

22 de jan. de 2011

Dizem que no final do arco-íris tem um pote de ouro..
Eu nem preciso de tanto..
Bastaria o fundo da íris.

21 de jan. de 2011

Tanto

Triste Bahia, ò quanto é semelhante...
Caetano dizia ontem, no pé do meu ouvido
Percebi a semelhança no ato
Atos todos, de uma peça que parece que nem começo, meio e tampouco fim terá
Uma baía isolada, ilha no oceano da cara, cabeça e olhar
Água cercando os lados e o meio, a linha entre as curvas que do pó emergem nuas
Nua como eu, que nessa praia de mares e morros, precisei nadar sem trajes
Nado e temo, demais, ou em menos
Menos um dia
De mais, estou indo embora, de novo, mas não de mim
Tampouco de mais...

18 de jan. de 2011

Eu fico

Nesses caminhos em direção ao mar, andei a navegar pela ficção.
Necessitamos fixar um ponto um pouco aquém do horizonte, pra perceber que ele passa por nós um dia, ou nós é que passamos por ele.
Se ficcionarmos esse ponto, entretanto, pode ser que ele nunca passe, desapercebido por nosso olhar ofuscado do real.
O Carcará na beira da estrada fixa-se em sua presa e a ela não oferta redenção.
A montanha cortada me acompanha, fixa, na chapada, mas lá nem sempre esteve.
Precisamos de um pouquinho de ficção pra criar a história das montanhas e das presas do Carcará
Pra dizer na nossa, precisamos mesmo é do aficcionamento do olhar, que tudo tem de real e traz no instante a redenção, que ele próprio tanto precisa.

Parece que são muitos os meus caminhos,
mas aquele que eu quero é um só.

Da Capital de mim

Caminhos trançados a dedos, terras e mares, quem dera todos.
Ares cantarolados nos cabelos da menina, de Rio Claro à casa de paredes brancas, ali na esquina.
Planos Altos e pequenas fronteiras, do centro do país ao beco da rua que na menina mora.
Serras e arados debulhando a estrada que segue e planta, na rede ali ao lado
De são Paulo aos cinco à Estrela aos vinte e cinco, ainda do primeiro de muitos tempos.
Tempos de escudos e invernos, cristalinos, tenros, verdejantes, incessantes.
De Goiás se vai ao longe, aos 90 do tempo que não se prorroga, no velocímetro da vida que faz dele instante, pra poder viver mais, a cento e vinte por hora.

14 de jan. de 2011

Por inteiro

O dobro da minha idade é um número inteiro cujo 2 mora na companhia do 5 e, se chegar bem perto, pode formar com ele o ápice de um símbolo bonito.
No ano passado o meu dobro era uma certeza exata, 2 números que juntos formavam uma companhia redonda, também inteira.
Percebi que entre os meus 2 dobros, o passado e o presente, se esconde um numeral ainda sem par, o 5 e uma companhia solitária.
Me pergunto onde se encontra sua metade e percebo que ela não é inteira, mas uma fração, uma entrelinha entre as metades dos meus 2 dobros, que por mim já passou.
Como não sou mulher de metades, resta-me esperar que a solidão do 5 dê lugar ao duplo sentido do meu dobro atual, inteiro, que eu anseio me esperar no 2.

6 de jan. de 2011

Paradoxo

O meu canto sai seco e confuso
Como o mandacaru menino,
que não sabe se conhecerá a próxima estação
Enxergar o céu, ali do chão, não lhe basta nem acalma, mas tampouco desanima
Seu horizonte de areia é movediço como as dunas dos desertos que nunca conhecerá
E traiçoeiro,
Como as águas que ameaçam, tardam ou sequer anunciam
É o que, por instante, ainda lhe faz cantar

5 de jan. de 2011

Cartas

Era uma vez um jogo de tarô, de cartas decoradas a nanquim
Eram luas e sóis, letras e datas, fotografias cuidadosamente entranhadas na memória
O baralho era efêmero, mas se consolidava no reflexo, de uma retina na outra
Ao invés de dizer sobre o futuro, ele dizia sobre o instante, que nada tinha a ver com o tempo, em sua definição
Dizia sobre a instantânea ilusão de realidade, sem citações de Foucoult ou Arendt
Só citava o olhar
Só citava a si mesmo

A solidez era tanta, que o baralho construía jardins, paredes brancas, redes e até castelos
Mas tinha, na sua força, o espelho dos olhares...2
O castelo do tarô não era o de Calvino, nem o do Príncípe, pequenino
Era de homens e mulheres, meninos e meninas
Era de meninos grandes, e mulheres tão meninas
E era decorado por flores, e suas cartas rústicas, vagarosamente lapidadas pelo vento

A efemeridade também era tanta, por se tratar de instante, que um vento bem mais forte, talvez um vendaval, acabou por soprar as cartas, ao invés de lapidá-las
Os meninos e mulheres alocaram-se na sua realeza e se edificaram, sem a solidez do reflexo em 2
Sem o baralho de tarô

Alguns construíram novos castelos, outras deitaram-se nas redes ou se apoiaram nas paredes

Da efemeridade de uma única retina, o tarô ainda constrói os jardins
E eles têm uma única rosa, protegida pela cúpula de um príncipe menino e eterno

22 de nov. de 2010

Patavinas

Querida Professora.
Acho que não poderei fazer a prova porque tem um menino andando de skate encima dela. Precisamos urgentemente resolver esse problema!
Agradeço sua compreensão.

Eram esses os escritos da prova de um aluno do segundo colégio.
Acima dos escritos, desenhada bem grande por sobre as 10 questões com tema DNA, estava a figura de um menino sobre um skate. O desenho não chegava a ser artístico. Fora composto a caneta, com traço simples, o menino feito de "pauzinhos". O contexto, entretanto, era pura arte.
Arte por parte de todos ali presentes.
Por parte dos alunos, em não fingir que se importavam com a nota da prova ou com o fato de ela estar em branco, sobre 80% das carteiras ocupadas.
Por parte da professora, em fingir acreditar que os alunos tinham qualquer tipo de condição de responder à prova sobre um assunto tão superficialmente, pra não dizer ridiculamente abordado.
Por parte da diretora, em fingir crer que a mãe do aluno se surpreenderia ao saber de sua criatividade enviezada.
Da minha parte, em me portar como espectadora dum filme holywoodiano frente à piada generalizada que se instaura, dia após dia, no sistema educacional brasileiro.

Essa foi a prova mais criativa que eu já vi. A diretora, entretanto, não parece ter interpretado assim.
"Não servirá nem para puxar carroça", ela gritou.
Novamente eu fui artista, pra não virar, de repente, terrorista. Pratiquei da minha arte patética do "filtro auricular e mental", tão aprimorada nos meus muitos anos de graduação.
Internamente, pensei que talvez o autor da prova não fosse mesmo passível de puxar carroça. Pensei que ele poderia, depois de algum desesforço mental, virar diretor de escola. Ou quem sabe, se se aprimorasse na arte da revolta, pudesse ser um grande publicitário, e no futuro ser até contratado para fazer o slogan daquela escola e seus grandes méritos no Saresp.
Divagações, patéticas na mesma medida da aula do segundo ano.

Esse foi o mesmo aluno que, não por coincidência, esteve por vinte minutos em pé de frente para a parede num dos cantos da sala, na última prova de biologia. O motivo era simples: por duas vezes pronunciou palavras ao vento, após ter terminado a prova. "Se vocês não sabem se comportar como adultos, serão tratados como crianças", gritou a diretora naquela ocasião. Três outros alunos também estavam nos outros três cantos da sala, pelo mesmo motivo. E eu, enquanto martelava para mim mesma que crianças também eram cidadãs, permaneci fisicamente confortável, imóvel sobre a cadeira, nos vinte minutos restantes de aula.

Mas crianças não têm senso de humor muito refinado. Nem tampouco escrevem corretamente o português, ou ainda, escrevem com corcondância verbal ou coerência discursiva. Não escrevem com a ironia que permeava a prova do aluno do segundo ano.
Confesso que esbocei um sorriso de canto ao ler a prova. Me senti, ao contrário da professora e da diretora, um pouco menos parte da palhaçada escolar, embora a intenção do aluno provavelmente tenha sido justamente o contrário disso.
Senti até um fio de esperança. Não por achar que o aluno estivesse consciente de seu protesto simbólico. Tampouco por achar que os outros 79% da sala estivessem protestando silenciosamente ao não preencherem sequer o nome na folha de questões. Mas por ter a certeza de que no picadeiro estavam somente eu, a professora, a diretora e o São Paulo faz escola, e de que os alunos, não queriam sequer ser os espectadores deste patético espetáculo chamado escola.

Crianças escrevem com inocência. Jovens ou adultos insatisfeitos, utilizam-se por vezes da ironia. E aqueles que até a perspectiva da escrita já perderam, apenas continuam escrevendo...
(em veículos de comunicação  nos quais sabem que bem pouco serão lidos)

7 de ago. de 2010

Matemática e Realidade

era o nome do livro da sétima série...

Estive a pensar sobre a matemática
Sobre como as letras vieram parar na companhia dos números
Sobre como vieram a ter expoentes e até raízes
Pensei que, talvez,  a matemática, assim como quase tudo, seja mais invenção que descoberta
Pensei que, talvez, a descoberta tenha sido a proporção, e, a partir daí, tenha-se inventado uma maneira de escrever e calcular as proporções que traduziam o mundo, tal como ele é
Não que os números, e também as letras, estivessesm ocultos nas coisas, esperando para serem revelados
Talvez a lógica é que estivesse oculta no homem, no momento em que olhava para elas
Pensei que, talvez, pudessem existir outras matemáticas, que traduzissem na escrita, tanto de letras, quanto de números, uma maneira totalmente diferente de interpretar (e calcular) a proporção das coisas
E que, ainda assim, essa nova maneira pudesse criar uma nova lógica, desde que respeitasse a proporção
Mas aí pensei o porquê, se isso fosse mesmo possível,  de ninguém ainda o ter feito
E aí pensei que talvez eu é que, na minha científica ignorância, não tenha conhecimento dessas outras lógicas
Ou que, talvez, elas não tenham de fato sido pensadas porque a primeira, esta que agrupa incógnitas, tenha levado a muitas derivações de si própria e, assim, partindo já de uma idéia definida, não tenha conseguido transpassar-se a si mesma e inventar outras tantas possíveis
O mais provável é que, talvez, não tenha sido, ou seja, nada disso...

15 de jul. de 2010

sim

O não é uma palavra importante
Não sei se consigo extrair dela muita beleza, mas sei que há alguma
Talvez a beleza se esconda na força que o advérbio traz
Ou ainda, na nossa própria, ao tê-lo no pé do ouvido

É fato que muitas vezes também é difícil tê-lo como um nó na garganta, esperando pra ser pronunciado
Principalmente quando, ao pé da mente, ou do coração, temos a consideração
Ou ainda quando, ao invés desta última, nos sobra a piedade

Na verdade, não me agrada muito nenhum destes últimos substantivos
Nem tampouco o advérbio
Não tanto pelo seu uso em si mesmos, mas mais pela culpa que eles deixam pelo caminho
Um amargo na boca, nos ouvidos, na consciência
Não posso, contudo, deixar de considerá-los necessários

Talvez a beleza se encontre na complexidade humana,
na arte de transfigurar substantivos, adjetivos, advérbios
na capacidade de afirmar nos lábios uma negativa expressa nos olhos e jeito
ou de negar nas palavras uma afirmação clara no peito
Talvez a beleza esteja na expressão silenciosa de substantivos nem tão belos
ou na interpretação muda destre silêncio gritado aos quatro outros sentidos

Talvez a beleza ensinue-se no agir, perante a necessidade do não
na (também) arte de não tentar transformá-lo em sim quando da necessidade ou vontade,  tanto de sua pronúncia, quanto de sua escuta
no aceitar de sua real condição adverbial
e no refletir sobre suas possíveis razões de ser

14 de jul. de 2010

esta[ciona]dos todos

Os meses são doze e os dias, 365
Fiquei a pensar se não poderiam ser 400, pra arredondar
No retângulo do meu quarto percebi que não, pois a conta tem algo de esferas
Círculos que ficam girando dentro de um grande espiral
Perguntei-me se não poderiam ser de uma outra forma qualquer...

Esse movimento suave, meio repetitivo, me fez voltar aos doze
Doze, que invertidos são vinte e um e que, no dezembro passado, trouxeram os vinte e cinco
Dezembro é um mês que me lembra o sol, mesmo que os vinte e cinco passados tenham se passado na neve, a menos 15
Acho que a lembrança vem dos meus tempos de menina, dos meus doze anos

Todo mês tem um quê de lembrança
Uma memória coletiva que constrói estações e a ela atribui dados
Num lance qualquer, os dados as vezes se dão por algarismos, que constroem dozes, vinte e uns e vinte e cincos
Constroem um ano inteiro

Minha lembrança coletiva de Julho sempre foram duas, o sete e a praia
Mesmo com a chuva e o frio, era o único set no qual o cinza combinava mais com o mar do que o azul ou o verde
Isso dava até um filme...

Mas eu sempre gostei mesmo foi de Maio
É um nome bonito, curtinho, e tem cheiro doce, de flor
E falando em flor, eu também gosto muito de Outubro
Do céu, das cores e do aroma também
Uma amiga se perguntava sobre a função da cor dos  frutos
Eu nunca tinha pensado que deveria haver alguma, só tinha até então achado bonito
Então pensei que, se esferas fossem espirais, os 365 poderiam ser 400 e os frutos poderiam ser coloridos por terem querido roubar, das cores, a doçura
Mas como esferas ainda são esferas, dados se traduzem em números e a natureza (nos) se traduz em dados,
um lance certeiro diz que os frutos são estratégicos em sua cor, ou  é ela o próprio resultado das estragégias de outrem
Assim como são os anos em seus dias e meses, a lua em suas fases,
e como são as memórias,
estacionais

13 de jul. de 2010

Avulsas

Eu sempre tive fichários
Acho que desde a quinta série, abandonei o caderno
O fichário era muito mais moderno e podia ter folhas de diversas cores
Além disso, cabia muito mais escritos... não tinha limite de palavras

Eu sempre me perguntei porque o fichário não chamava folhário, já que dentro dele iam folhas, e não fichas
Eu sempre entendi as fichas como algo padronizado e de folha única... dados fundamentais de alguém ou alguma coisa, para um propósito definido
Ao longo dos anos, fui aumentando o número de folhas dos meus fichários
E quanto mais folhas eles tinham, menos eu olhava pra elas...

Já faz algum tempo, eu briguei feio com o fichário
Não sei ao certo o motivo da briga, só sei que nela quase entraram as canetas e os livros todos
(Canetas eu também passei a usar na quinta série)
Mas aí eu resolvi comprar um caderninho
E nele escrevi sobre tudo e todos e sobre mim
ou sobre tudo e todos em mim, ou ainda o contrário, não sei ao certo

Só sei que andei com ele por muito tempo
Tanto, que passei a pensar estar fazendo dele um fichário
As folhas não poderiam durar tanto, a menos que as anotações fossem padronizadas e fundamentais
Aí fui em busca dos meus folhários, guardados no pó do meu armarinho velho
E entendi que a briga não foi por haver padrões, ou por não haver propósitos
Foi pela economia
Não de folhas, nem de fundamentos
Mas de mim

Estou refazendo as pazes
com ele
e também as minhas
E, por via das dúvidas,
ando escrevendo a lápis...

14 de mai. de 2010

Tanto e tãopouco

Ouvindo a melodia de um antigo pas de deux, desenterrada dos meus tempos de ballet, percebi que ela tinha um "quê" de fantasma da ópera.
Fantasmas meus, mais do que de óperas quaisquer
Nenhuma relação com a música que tocou hoje cedo na academia de musculação
Talvez tenha recordado o ballet para tentar conter minha irritação às 8 da manhã, após séries de repetições diversas e 20 kilômetros rodados em um metro quadrado, vendo o jornal da manhã
Não que outrora, dançando o tal pas de deux às oito e meia da manhã de sábado, minha irritação fosse menos incisiva
Era, talvez, apenas menos intrusiva
Tempos modernos, jà hà muito tempo trás

Falamos de Chaplin na mesma aula que discutimos Foucault
As prisões do corpo, as esferas de poder
Corpos dóceis, era o tema da discussão, docilmente feita em círculo
Os mesmos círculos feitos pelos pedais abaixo dos meus pés, na academia
Docilmente eu me irreitei, já que a rebeldia seria contra mim mesma
Já a irritação, posso delegar

O delegado não interveio no roubo da bolsa da senhora, dentro da delegacia
Ele também delegou, sua função a outrem
Funcionando assim, os tempos também fazem círculos, dóceis, resignados ou abnegados, não sei ao certo
Sei que minha irritação se esvaneceu, na louça sobre a pia, no garagem repleta do xixi do meu cachorro, no pedido de uma amiga
Não nestas coisas em si, mas no que, delas, me remeti
A cerveja de ontem a noite, meu cachorro e minha amiga