27 de set. de 2011

Vacaranha

Há uma raiz de árvore recém-derrubada num sítio que fica no caminho pra cidade.
E onde eu vejo desmatamento, meu pai vê poesia.
Ele pediu ao dono do sítio se podia levar a raiz pra casa, pra fazer uma escultura.
Uma vaca com cara de aranha, ele disse.
Enquanto eu tentava encontrar qualquer sentido naquela junção, meu pai contou a história.
"Há muitos milhões de anos, no tempo dos dinossauros (q nunca ninguém viu), existiu também a vacaranha.
E já que o que prova que de fato os dinossauros existiram são os fósseis, então está aqui a prova: um fóssil- raiz, com tamanho de vaca e cara de aranha.
Vacaranha."

Meu pai, desde sempre, é dado à arte.
Conta-se que ele tocava violão na Sé, quando veio embora da roça de café. 
Ele me diz que hoje não gosta, mas é só eu pegar a viola e ele dedilha coisas que em dois anos de aula eu não aprendi.
Certa vez ele vez um boneco de ferro, e colocou na frente da loja que nos sustenta.
O boneco era de tamanho real, tinha uma cabeça de pedra, na qual ele pintou um sorriso, e uma das mãos apontava pro céu.
Roubaram as mãos e a cabeça.
Mas eu tirei uma foto, que ninguém rouba e não desbota. Eu me lembro.

Meu pai, além de tudo, é piadista.
Hoje, durante a propaganda de um carro, ele disse: "bonito esse novo carro da Honda".
Eu corrigi: "pai, não é da Honda. é da Hyundai".
E o meu sorriso foi ainda maior do que o do boneco com cabeça de pedra quando ouvi:
"Ha tá, é que o símbolo é parecido...é Hondai, então".
E pra essa história, nem precisou de fóssil...

Hilst

"Aquele fino traço da colina
Quero trancar na cancela
Da alma. Alimento e medida
Para as muitas vidas do depois.

Curva de um devaneio inatingido
Um todo estendido adolescente
Aquele fino traço da colina
Há de viver na paisagem da mente

Como a distância habita em certos pássaros
Como o poeta habita nas ardências."

*****

"Carrega-me contigo, pássaro-poesia
Quando cruzares o amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido essa viagem
Que faço a sós comigo.Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de ilusão.
Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro-poesia
E a paisagem limite: o fosso, o extremo
A convulsão do homem.

Carrega-me contigo.
No amanhã."

****

"Costuro o infinito sobre o peito.
E no entanto sou água fugidia e amarga.
E sou crível e antiga como tudo aquilo que vês:
Pedras, frontões no todo inamovível.
Terrena, me advinho montanha algumas vezes.
Recente, inumana, inexprimível.
Costuro o infinito sobre o peito
Como aqueles que amam."

23 de set. de 2011

"As coisas desejam ser olhadas de azul"

A manhã desabrochou em gotas de pássaros desajustados
Na madrugada haviam diferentes cantos para diferentes horas
Urutaus e melodias não classificadas, uma e depois outra, compondo o caminhar dos ponteiros noturnos
A siriema contemplou a deixa da primeira luz, e os sabiá laranjeira deu o toque de acolher do novo dia
Nada foi razoável

22 de set. de 2011

Gotas de azul

"É como se o céu de repente ficasse mais azul", disse a senhora de sorriso gentil.
Não é que eu desacreditei, mas achei simplesmente que o céu não precisava de mais azul, nesse lindo primeiro de primavera.
Ela não entendeu. Me disse que o azul seria diferente.
Pode ser.

Dois meses de espera pelas 20 gotas que prometem colorir o céu.
20 dias de prazo pra uma única cor, e a senhora de sorriso singelo nem imagina que eu consegiria me embebedar de azul em apenas um olhar.
Eu não desacreditei da senhora...mas por ter nascido assim, meio lilás, ainda acredito mais na despoesia que me diz que "pra encontrar o azul, eu devo usar pássaros".
Não se tratava de pintar o céu, em gotas tarjadas de preto.
Em todo caso, nessa duplicidade de meses, gotas e dias, eu vejo cisnes. E vai ver que terei neles a cumplicidade que as gotas me ajudarão a compor, enquanto empresto pro céu o único azul que eu conheço. A mesma cor, de um único olhar.

Toque

Toca, minha música roubada, apropriada, sentida
Toco, meu eterno esconderijo, quente, aberto, envolto, batido
Toca, sua doce melodia, grave, suave, baixinha
Toco, sua face enrijecida, séria, doce, macia
Toca, minha alma alagada, escancarada, exagerada, apaixonada
Toco, minhas mãos pecaminosas, imprudentes, desajeitadas, incoerentes
Toca, minha pele imaculada, intocada, envergonhada
Toco, minha boca complacente, conivente, eloqüente
Toca, sua decência estampada, invejada, odiada
Toco, minha sede arrependida, machucada, constrangida
Toca, seu sentir internalizado, guardado, findado
Toco, meu sentir emudecido, casto, proibido, urgente, requerido
Toca, minhas mãos insinuadas, tenras, trêmulas
Toco, teu olhar penetrável, forte, calejado, recatado
Toca, minha angústia amargurada, cultivada, silenciada
Toco, sua leveza estampada, sofrida, invejada
Toca, meu olhar incandescente, mareado, ressacado, inconseqüente
Toco, sua boca de canto, de encanto, de versos, de nós
Toca, minha nuca desnuda, desmedida, desconcertada, redimida
Toco, a rudeza da sua pele e poucas palavras
Toca, minha boca seca, perdida, vencida, pedida
Toco, seu gosto comedido, confuso, bom, invadido
Toca, minha pureza violada, impensada, indesejada, guardada
Toco, sua nobreza violada, irrompida, temida, sentida
Toca, minha lágrima suada, sentida, cansada
Toco, seu desejo afastado, querido, pensado, pedido
Toca...me

Mel

Qual será a cor do espaço entre o silêncio e o próximo dizer?
Qual será o jeito do olhar que nesse espaço fotografa e sente-se desnudo, fotografado?
Quais serão os caminhos percorridos nos instantes relutados, desviados?
Qual será o gosto dessas marcas, desses arredios olhos açucarados?
Qual será a mágica a permear o fino traço que separa as linhas dessa história?
Qual será o jeito do não saber, ou não querer portar-se?
Quais serão os tempos do querer-se ir e do intensamente precisar ficar?
Qual será a cor do seu e do meu olhar?

20 de set. de 2011

Transcendência

Há um cheiro de chuva no desanuviar abafado dessa manhã.
Há uma quietude singela.
Há uma cumplicidade muda nesse nosso caminhar.

19 de set. de 2011

As uvas e o vento

"Tu perguntas o que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados. Respondo que o oceano sabe. E por quem a medusa espera em sua veste transparente?Está esperando pelo tempo, como tu. Quem as algas apertam em teus braços? - perguntas - mais firme que uma hora e um mar certos? Eu sei. Perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando como o unicórnio do mar, arpado, morre.Perguntas sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras primaveras dos mares do sul. Quero te contar que o oceano sabe isto: que a vida, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas cor de sangue tornou a pedra lisa encheu a água-viva de luz, desfez o seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornicópia feita de infinita madrepérola. Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de dedos habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho como tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe dentro do vento"

Metade

"Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio. Que a morte de tudo em que acredito não me tape os ouvidos e a boca. Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio. Que a música que ouço ao longe seja linda ainda que tristeza. Que o homem que eu amo seja pra sempre amado, mesmo que distante. Porque metade de mim é partida, mas a outra metade é saudade.Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor, apenas respeitadas, como a única coisa que resta a uma mulher inundada de sentimentos. Porque metade de mim é o que ouço, mas a outra metade é o que calo. Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço. Que essa tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada. Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesma se torne ao menos suportável. Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso que eu me lembro ter dado na infância. Por que metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei. Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito. E que o teu silêncio me fale cada vez mais. Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba. E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer. Porque metade de mim é platéia, e a outra metade é canção. E que a minha loucura seja perdoada. Porque metade de mim é amor, e a outra metade também"

E eu não dou a mínima se dirão que é clichê...

10 de set. de 2011

Esperas e paixões

Havia um senhor sentado no banco de espera do veterinário. Havia um senhor sentado, há espera da sua solidão.
Havia uma moça sentada no banco de espera do veterinário. Havia uma moça sentada, acariciando a espera de sua solidão.
A espera do senhor tinha pêlos pretos. A solidão da moça, também.
A solidão do senhor era de médio porte. A espera da moça, era imensa.

O senhor passou pela moça, e na sala de espera lotada de solidões, a ela se refereiu num sorriso.
A moça passou seus olhos pelo senhor, e na solidão da sala lotada de esperas, reconheceu o sorriso do senhor.
Se conheciam.

Poderia esse conhecer ser apenas uma afinidade de esperas, ou de solidões. Mas não.
Conheciam-se de uma conversa em outrora.
O senhor não se esqueceu. E a moça jamais poderia deixar de lembrar.
Revisitou a moça aquela outra solidão. Uma de rua, de imenso porte, doente, atada por uma corda na beira da avenida, a esperar na calçada pelo seu senhor.
A moça parara o carro para averiguar, e então vislumbrou a espera daquele mesmo senhor.
"Teve cinomose, está com sequelas nervosas, fica assim, balançando a cabeça sem parar. Não consegue nem tomar água sozinho, mas sarou, está engordando e tomou banho hoje. Está aqui para tomar sol. Peguei da rua. Venha ver, tenho mais alguns aqui na minha casa. Todos de rua."
Foi assim que a moça conhecera o senhor.

Não havia pressa na sala de espera. Nem das carícias da moça, nem da quietude do senhor.
Não mais se entreolharam. Deleitavam-se de sua espera, tanto ele, quanto ela. Ambos a olhar fixamente pontos indefiníveis. Talvez as varizes sobressaltadas nas pernas do senhor, sua camisa branca amarelada, seus óculos embaçados, seu carro de para-choques batido. Talvez o jeans largado da moça, seus chinelos avermelhados, suas mãos a apertar-se uma a outra, seus lábios cerrados. Jamais se poderá supor.
A espera da moça entrou na sala do veterinário. E ao dela sair, não mais encontrou o senhor. Haviam outras moças, outros senhores, outras esperas. A mesma solidão.

A moça e o senhor estavam sozinhos. Mas não estavam sós.
Ela nunca esqueceria daquele senhor. E ele, não aparenta esquecer daquela moça. Numa tarde de outrora e nessa manhã de sábado, ambos se doaram e se roubaram a paixão da escolha.

7 de set. de 2011

Caso de Amor

"Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito de eu ir andando sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinho sobre seu corpo. De minha parte eu achei ela bem acabadinha.Sobre suas pedras agora raramente um cavalo passeia. E quando vem um, ela o segura com carinho. Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas e de bichos. Emas passavam sempre por ela esvoaçantes. Bando de caititus a atravessavam para ver o rio do outro lado. Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela como se deve comportar na solidão. Eu falo: deixe, deixe meu amor, tudo vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos vai desaparecendo no fim de uma estrada… Deixe, deixe, meu amor"


                                                                                                                                 (Manoel de Barros)

6 de set. de 2011

O resto é resto...(amém)

"Não importa se só tocam o primeiro acorde da canção, a gente escreve o resto em linhas tortas, nas portas da percepção (...) Em livros de histórias seremos a memória dos dias que virão, se é que eles virão. Não importa se só tocam o primeiro acorde da canção, a gente escreve o resto e o resto é resto, é falsificação (...) Livres da estória, a nossa trajetória não precisa explicação e não tem explicação. Somos um exército, o exército de um homem só, no difícil exercício de viver em paz. Somos um exército, o exército de um homem só e todos sabem que tanto faz, ser culpado ou ser capaz. "

                                                                                        (O exército de um homem só /Humberto Gessinger e Augusto Licks)

A moça que trabalha na casa da minha irmã vai embora. Ela começou a trabalhar há uns 3 meses, mora com minha irmã e tem uma folga por semana, não paga nada pela moradia e recebe um salário. Mas não tem horário fixo, trabalha quando ou enquanto há serviço. Minha irmã tem quatro filhos: o marido, um menino de cinco e dois, gêmeos, de um ano. Um dos gêmeos não está mais entre nós, então, na prática, são três filhos para cuidar. O menino menor tem uma babá, mas ela tem horário fixo, o que significa que, fora desse horário, minha irmã e a moça se revezam no cuidar das crianças. A moça também faz a comida e cuida da casa. Ela tem a minha idade. De uns dias pra cá, a moça começou a ter crises de choro e tristeza profunda, que culminaram no seu pedido de demissão.
A moça que vai embora da casa da minha irmã é uma pessoa doce. Antes desse trabalho, já  tinha trabalhado em dois outros empregos, os quais abandonou pelo mesmo motivo. Por falar em motivos, um dos motivos que a tornou ideal para trabalhar com minha irmã é o de que ela não costuma sair, não tem muitos amigos e fica o tempo todo em casa. Assim sendo, aguentaria um trabalho que necessita de uma forte dedicação... Mas a moça não aguentou. Talvez o trabalho, talvez a distância da família. Ela está chorando, e indo embora.

Minha mãe hoje cedo me mostrou o recibo que comprovava o pagamento da funcionária aqui de casa. O recibo mostrava a quantia de R$ 680,00 e minha mãe me disse: "trabalha o mês inteiro pra ganhar isso". Então eu apenas disse que era uma vergonha. E minha mãe se enfureceu, dizendo que não era uma vergonha, que era um trabalho digno, e que esse era o piso salarial. Mas aí eu expliquei a ela o que queria dizer com a fala que a deixou enfurecida. Eu disse: "não é uma vergonha pra ela, lógico que não, pra ela é um orgulho. É uma vergonha pra nós". Aí mamãe consentiu e, balançando a cabeça, fez o pagamento da nossa funcionária.

Ontem aconteceram fatos marcantes. Falhamos, ao tentar subverter a ordem. Pilhas de emails anarquistas, inúteis. No momento da ação, falhamos, por excesso de discurso e falta de coesão.

E o que tem a ver isso tudo?

Meu cunhado disse coisas que não gostei, sobre as crises da funcionária da minha irmã. Minha mãe não gostou do que eu disse, sobre o salário da funionária aqui de casa. Eu não gostei de algumas coisas que ouvi e me peguei concordando, no almoço da subversão discursiva. A funcionária da minha irmã  "surtou"  tanto quanto surtam aqueles que acham que o emprego resume, ou pode resumir a vida. O piso salarial da funcionária da minha, e de todas as outras casas, não é uma moratória. Subverter apenas no discurso, é fácil e cômodo. E ajuda a manter as coisas exatamente como são.

No fim das contas, não atentar-se ao fato de que ninguém chora compulsivamente do nada e de que é possível pagar mais, ou atribuir menos serviço, se assim julgar-se mais justo, são apenas outros exemplos da mesma situação que nos leva ao afago do ego no excesso de palavras vazias: no fim das contas, cada um cuida do seu, e Deus, que cuide do resto.