30 de mar. de 2011

Sobre pautas e cuecas

O laudo técnico da ótica dizia: troca não realizada por constatação de uso indevido. Uso indevido, método qualitativo de análise, por muito ignorado pelas ciências ditas “duras” e até hoje visto com maus olhos por elas. Tratando-se justamente de olhos, de óculos de grau, meu olhar criativo conjecturou possíveis usos indevidos: como colar, arquinho de cabelo, lupa das crianças, sossego do cachorro, peso de papel. Não, eu não havia utilizado indevidamente meus óculos. Olhos de volta à dura realidade do papel-laudo: lentes – sem defeito; banho anti-reflexo – sem defeito; blá blá blá – sem defeito. Constatação: uso indevido. Olhos de interrogação, circulando o espaço do quarto, onde outrora os óculos habitaram por uma semana, desde a aquisição. “Uso indevido”, olhos pensantes, “festa a fantasia: não; aventuras eróticas: não; excesso de lágrimas: não; lambida do cachorro: também não; controle de televisão por engano: não”. Olhos intrigados, ainda calmos, na nota de rodapé do laudo: os óculos devem ser lavados com detergente ou sabão neutros e enxugados com guardanapo de papel ou tecido macio. Maciez: outra análise qualitativa. Olhos no banheiro, constatando: sabonete líquido neutro e toalha TECA, ultra macia (na qualificação minha e da etiqueta). Não, eu realmente não usei indevidamente os meus óculos. Olhos no laudo, levemente irritados, traduzindo o técnico: "se vira com os riscos, mané, seus cinco cheques já estão pré-datados".

E eu precisava de uma pauta.

Então conjecturei duas: a cientificidade dos métodos técnicos qualitativos nas entrelinhas dos consumidores que lavam os óculos segundo as normas técnicas; ou: a subjetividade da técnica: qualitativamente a favor de quem? É, talvez não fossem temas noticiáveis. Então me sentei na cozinha, reclamando meu infortúnio não-noticiável e recebendo conselhos de “não se revolte com coisa pouca”, enquanto me lembrava de ouvir indignações terríveis sobre as cuecas no chão do banheiro. Tive um choque de realidade às avessas. As cuecas no chão do banheiro seriam mais indignantes do que meus direitos negados de consumidor? Ou seriam elas mais apavorantes do que os cachorros sarnentos espantados aos montes, diariamente, da portaria do meu condomínio? Lentes de R$500 reais seriam menos importantes do que lentes de R$2000, numa lógica técnica-subjetiva? A construção do nosso entender da culpa, onde se constrói? Será que eu devo desculpas pela maciez não suficiente da toalha que riscou minhas lentes? Devo me retratar aos métodos qualitativos, os quais não me são claramente especificados, e devotar toda minha revolta às cuecas? Ou devo canalizar a energia da revolta na repreensão aos latidos do filhote do meu cão, para talvez construir nele o mesmo derrotismo que me faz não latir os meus direitos de cidadã; qual seja, talvez, o mesmo derrotismo que faz o meu cão não latir, hoje, quase nada. Indignações, construções sociais pré e pós-estabelecidas? Injustiças, pautáveis? Valores, noticiáveis? Creio precisar de pauta mais técnica, quem sabe sobre como lavar lentes de grau de alta qualidade com detergente neutro, secar com tecido macio, e rezar, para não ter seu desvio padrão classificado qualitativamente como uso indevido.

14 de mar. de 2011

Graça

Hoje tive alguns encontros com o passado.
Um passado tão próximo, tão vivo, e tão longínquo.
Creio que o que me levou às recordações foi um almoço solitário num restaurante lotado. Solitário, não sozinho. E por opção.
Cumprimentei a invisibilidade do moço que retirava os pratos, enquanto me dava conta da minha própria, também a ele. Achei graça.
Graça, outro encontro. Hà tempos não encontrava essa ótica.
Encontrei a falta de civilidade ao me deparar com a insignificância da faixa de pedestres desses lados tropicais. Mas me lembrei, de cara, da falta de humanidade também tão realçada onde as faixas têm seu poder.
Engraçado, foi o achar da graça.
Talvez tenha se dado por ouvir um alerta de mensagem de um celular que eu já não tenho mais, meu antigo companheiro nos mares do norte. O sms não era pra mim, desta vez. A lembrança, em contrapartida, sempre será.
Outonos de olhos e ouvidos, folhas do Porto, música doce de praça, neve de Seia, blusa de lã cheirosa, mar de África, cores de jardim. Fotografias que não se rendem ao amarelar do dia, dos meses, dos anos, se assim for preciso.
A graça pode ter ar de tristeza. E por isso mesmo, é ainda mais bela e doce. Azul, mesmo com chuva fina na janela do carro estacionado, esperando pelo doce amargo do café.

4 de mar. de 2011

Casa pré-fabricada

Abre os teus armários, eu estou a te esperar
Para ver deitar o sol sobre os teus braços, castos
Cobre a culpa vã, até amanhã eu vou ficar
E fazer do teu sorriso um abrigo

Canta que é no canto que eu vou chegar
Canta o teu encanto que é pra me encantar
Canta para mim, qualquer coisa assim sobre você
Que explique a minha paz

Mais vale o meu pranto que esse canto em solidão
Nessa espera o mundo gira em linhas tortas
Abre essa janela, a primavera quer entrar
Pra fazer da nossa voz uma só nota

Sexta feira, véspera de festa, e acordei com a melodia que chama a primavera
Primavera igual a da minha folha azul sulfite, que ainda floriu pouco, coisa da qual não me arrependo
Contei as flores e lá haviam duas
Dois dias inteiros, a versar no singular
Dois concorrentes por vaga, foi o que me disseram ontem, na entrevista
Concorrer é palavra que não me cabe, a não ser que seja para correr junto, grudado, mesmo que distante e singular pareça
Correr pra alcançar a nota mais doce, mais suave, mais terna e eterna
Dois foram os dias de flores, que floriram forçadas no meu inverno azul bebê
E eu, que sou simbólica, gosto da casa construída aos poucos, pensada, sentida, pluralizada
Deixo entrar a todos, mas sempre de dois em dois, eu e mais um
Deixo entrar pela única porta aberta, enquanto as duas abas da janela repousam encostadas
Deixo entrar, visitar, eternizar o instante, mas por hora moro só
Moro no 1, acompanhada por dois longos zeros e instantes edificados
Moram aqui ambos numerais, e na minha simbologia, eternizado está um só
Um, que chama o outro, querendo encontrar o novo, de novo
Um, que se reconstrói ainda mais puro e leve, que se representa na menina e a ela representa
Um, que representa a espera solitária, sua angústia, medo, ânsia, vontade, saudade, vigor, amor; mas que não se adia
E se apresenta, tocando de leve as 1003 primaveras que entrarão pelas duas folhas abertas, azuis, sulfites, já-nelas.